Vivemos ainda os efeitos político-partidários da intervenção da troika em Portugal. Uma descrença nas fórmulas usadas por socialistas e sociais-democratas e a incapacidade de um partido político convencer a maioria da população com o seu projecto de governação. Acresce a esse facto que a inexistência de uma visão estratégica a longo prazo para Portugal, perante a deslocação do centro de poder do Atlântico para o Pacífico, não ajuda à falta de confiança nos principais actores políticos.

A política é uma arte de compromisso, possível apenas se tivermos convicções. São estas que servem de base de negociação para ajustes e pactos que formam maiorias, através das quais uma das visões se imporá. Este ponto é importante porque de pouco serve ter razão antes de tempo se ninguém nos ouvir. A título de exemplo, vou referir duas personagens políticas, diferentes no tempo e no espaço, uma que nos familiar, outra que nos é totalmente desconhecida. Cada um deles teve a razão do seu lado, embora tenham agido de formas distintas. As visões políticas de ambos acabaram por se concretizar, embora um tenha ajudado os seus contemporâneos enquanto o outro de pouco os serviu. Refiro-me a Mário Soares e a Eugen Richter.

Richter foi um político liberal alemão do século XIX e um dos principais opositores de Bismarck.  O que aqui vou mencionar consta, essencialmente, do livro de Edmund Fawcett, ‘Liberalism, The Life of an Idea’, cuja edição em português seria da máxima conveniência e utilidade. Como bom liberal do século XIX que era, Eugen Richter defendia as liberdades cívicas e orçamentos apertados e excedentários. Preferia a livre concorrência às grandes empresas, defendia o livre comércio e o antimilitarismo contra o proteccionismo ou a defesa da guerra como motor de unidade nacional. Foi um duro crítico do anti-semitismo que grassava pela Alemanha e avisou para o perigos que seria unir a Alemanha com base no exército e no ódio aos judeus. Ao mesmo tempo, e apesar de detestar o socialismo, opôs-se ferozmente às leis anti-socialistas de Bismarck. Richter era tão crítico do socialismo que chegou a antever o que veio a ser a RDA: um estado do qual os cidadãos queriam fugir, em que o poder político determinava onde as pessoas viviam, lhes dava casas sem casa-de-banho e trabalho sem qualquer valor acrescentado.

Richter foi completamente derrotado por Bismarck e hoje é uma personagem esquecida do grande público. Mas, caso tivesse sido bem-sucedido, nem a primeira nem segunda guerra mundial teriam existido e a Europa perdido grande parte da diversidade cultural e religiosa que tanto contribuía para a sua riqueza e capacidade inovadora. O projecto europeu do pós-guerra baseia-se, mesmo que implicitamente, na visão de Richter e não na de Bismarck. Mas isso é agora. No seu tempo, Richter falhou. E falhou porque, apesar de ser um analista perspicaz da natureza humana, Richter não foi capaz de ceder no supérfluo e imediato para garantir o essencial e o remoto. Não fez compromissos. A sua vida política foi um fracasso e as suas palavras apenas servem de conforto para os que o lerem ou dele souberem, mais de 100 anos depois da sua morte.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Após o 25 de Abril, Mário Soares queria um Portugal europeu que compensasse o fim do Império. Os anos de 1974-75 marcaram o fim de uma aventura começada em 1415 e, pela primeira vez desde os descobrimentos, Portugal não podia contar com a largueza atlântica para se fazer valer. Pelo menos nos anos mais próximos. Ao mesmo tempo, Soares defendeu uma democracia ocidental, primeiro contra a ditadura de Salazar (um regime ultrapassado com a vitória aliada em 1945), depois contra a ditadura comunista que Cunhal queria instalar no nosso país. E foi aqui que Soares se distinguiu de Richter: na acção política.

Porque Mário Soares, bem ou mal, fez compromissos. Distinguiu o essencial do acessório, o que seria indispensável e imediato do supérfluo e distante. Empatou quando viu nisso um ganho ou a única saída do momento. Avançou quando houve oportunidade. Sem a sua acção política no período do PREC, a democracia portuguesa não teria existido como a conhecemos hoje. As nossas vidas não teriam sido as que tivemos até ao momento. A acção de Mário Soares desse período vem bem descrita no livro de David Castaño, ‘Mário Soares e a Revolução’, ou nas conversas que teve com Maria João Avillez e que deram lugar a três volumes, entretanto há muito esgotados mas que a Fundação Calouste Gulbenkian se propôs reeditar com o pretexto do centenário do nascimento de Mário Soares.

Margaret Thatcher disse uma vez que acreditava no que dizia. Por isso não tinha fé em consensos, mas em acordos com vista a levar por diante as políticas em que acreditava. Para Thatcher, enquanto o consenso dissolve as convicções, os acordos fortalecem-nas.

E é precisamente com este ponto que voltamos ao princípio desta crónica e ao impasse político em que Portugal se encontra. Poucos se importam em saber qual dos principais actores políticos tem capacidade reformista e de combinação de vontades, até porque estas não existem em Luís Montenegro, Pedro Nuno Santos ou sequer André Ventura. O mero jogo táctico do votam a favor ou contra o orçamento, mais ao sabor das previsões eleitorais que à necessidade das reformas, é revelador disso mesmo. Combinar visão estratégica de longo prazo com aptidão para o jogo político do compromisso não é para qualquer um. Que o diga o visionário Eugen Richter.