Após o 25 de Abril de 1974 confundia-se a direita com a resistência à mudança e a esquerda com a revolução. Mais tarde, fruto dos governos de Thatcher e Reagan, a direita também passou a ser associada à preferência pelo indivíduo enquanto a esquerda privilegiava o colectivo em detrimento do individual. Uma era egoísta, a outra solidária. Foram tempos fáceis, pelo menos para quem saía a ganhar com a qualificação. A sinalização da virtude não é um vício de agora; tem uma longa história.

Sucede que estas qualificações apresentavam uma falha de raciocínio: se a direita de Thatcher e Reagan prezava o indíviduo sobre o colectivo como é que podiam ser contra a mudança? Na verdade, sendo de direita, Thatcher e Reagan defendiam a liberdade económica associada à liberdade política. Acrescentavam que sem liberdade económica não existiria progresso, evolução política e menos ainda social. Ou seja, aqueles dois não podiam ser contra a mudança. Por alguma razão, a grande revolução liberal do século XX foi feita por dois conservadores à frente de dois partidos igualmente conservadores. Mais: tanto um como o outro combateram o comunismo e o socialismo realçando a desumanidade destas duas ideologias. Tanto para Reagan como para Thatcher, o socialismo prezava os números e a tecnocracia em detrimento das pessoas, das comunidades e da vida social. Num artigo publicado no Daily Telegraph em 16 de Maio de 1978, Thatcher chegou a referir que o indíviduo apenas se completava quando ao serviço dos outros e de Deus.

Como diz João Pereira Coutinho, em ‘Conservadorismo’ (D. Quixote, 2014), “Somos todos conservadores”. Todos temos essa ‘disposição’. Pereira Coutinha cita Oakeshott, “essa forma de ser e de agir que levará o conservador a usar e desfrutar aquilo que está disponível em vez de desejar ou procurar outra coisa”. Uma disposição conservadora que se distingue do conservadorismo político ao ponto de “nem sempre coexistirem no mesmo indivíduo”. Na verdade, e continuando com JPC, há pessoas com disposições conservadoras que não se revêem nos partidos conservadores e quem seja progressista e vote em partidos conservadores. É esta possibilidade de existirem vários conservadorismos que permite conservadores que se opõem ao livre comércio ao mesmo tempo que outros que lhe são totalmente favoráveis. Esta é uma diversidade que assenta no reconhecimento (que devia ser óbvio, mas não é para muitos) que as pessoas são todas diferentes entre si e que mudam ao longo das suas vidas.

Sem este reconhecimento, sem a aceitação que as pessoas são diferentes entre si e que vivem em sociedade e se organizam ou aderem a associações de variadíssima ordem e com os mais diversos objectivos, a liberdade transforma-se num fim político em si mesmo. Algo imposto pelos auto-intitulados conhecedores da verdade. A luta pela liberdade torna-se na exigência prepotente daqueles que nos querem libertar do que não sabemos que nos prende. O certo é que o Período do Terror francês não nasceu do nada, à semelhança dos regimes sanguinários que marcaram o século XX. Em comum tinham a vontade de libertarem a humanidade de acordo com desígnios que alguns vislumbravam.

Na actualidade, o fenómeno não assume essa gravidade, mas existem sinais que nos deviam deixar de sobreaviso: vejam-se as medidas para a igualdade de género, algumas das quais sem qualquer conhecimento das pessoas a quem se dirigem; a tentativa de proibição dos automóveis circularem aos domingos na Avenida da Liberdade, em Lisboa; o fecho de ruas sem que se ouçam os implicados por essas medidas ou ainda as soluções mais inocentes como a aposta cega nas ciclovias, mesmo que à custa da destruição dos passeios para peões. Neste ponto concreto é interessante como se repete, a favor das bicicletas e das trotinetes, o mesmo erro que favoreceu os automóveis: um total desrespeito pelo peão, por quem anda a pé; por sinal a forma mais ecológica de circular que o ser humano até agora descobriu.

Sem o respeito pelo concreto, sem o reconhecimento de algo maior que nós, a liberdade torna-se ilimitada e um instrumento nas mãos de quem governa o Estado. Um exemplo de um partido português que não coloca estes travões na luta pela sua liberdade é o Livre. Uma leitura do seu último programa eleitoral esclarece melhor o que pretendo dizer. Veja-se a proposta 2.3 no capítulo ‘Igualdade, Justiça Social e Liberdade’. Ou a 2.4 que quer tornar obrigatória a formação dos advogados ‘sobre as atualizações das convenções internacionais dos direitos das mulheres’ esquecendo que os advogados são profissionais liberais a quem a obrigação de matérias de estudo abre a porta ao fim de uma independência profissional que é essencial para a manutenção das bases de um Estado de Direito. São pormenores, alguns exemplos que comprovam o quanto a luta social sem freios pela liberdade se pode traduzir no fim dessa mesma liberdade. É neste sentido que os liberais precisam dos conservadores tal como estes aprenderam muito com aqueles. Essa necessidade de diálogo torna-se ainda mais importante quando olhamos para os EUA que, como tive oportunidade de referir num outro texto para este jornal, podem estar em via de esquecer a sua herança liberal e se tornarem numa mera potência tecnológica sem história nem referências. Sem destino nem fim concreto à vista. Os liberais precisam mesmo dos conservadores porque é importante termos os pés bem assentes na terra para não cairmos num inferno.

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