A freguesia de Arroios, em Lisboa, tornou-se uma espécie de versão concentrada dos dilemas que vive o Ocidente, à escala e ao modo português. Prova disso é a desordem ininterrupta que agita o debate público urbano, quase sempre com origem ali, esta semana a pretexto de uma decisão da Presidente da Junta sobre esplanadas. Explico. Durante as restrições da pandemia de covid, sobretudo pelas regras do “distanciamento social”, a Junta de Freguesia deu uma autorização provisória aos pequenos cafés e restaurantes para armarem esplanadas na rua, ocupando áreas de passeio e lugares de estacionamento. A autorização era, como se disse, provisória; a pandemia acabou, por decreto oficial do Estado português no final de Setembro de 2022, e da OMS, a meio de 2023; mesmo assim, a Junta de Freguesia reconheceu que os efeitos económicos não estavam ainda ultrapassados e alargou o prazo da autorização até ao final de 2023. Estamos em Julho de 2024 e os abarracados a que chamam “esplanadas” não foram removidos. Por seu lado, os moradores queixam-se de barulho altas horas da madrugada e de falta de lugares de estacionamento.
Os moradores têm direito a dormir e a estacionar, num bairro muito maltratado que começa a parecer uma favela: as ruas estreitas, sem largura para as alegadas esplanadas, os peões, os carrinhos de bebé, as bicicletas e trotinetes, as faixas de alcatrão, e tudo o que lá querem meter; os imigrantes e as pessoas sem abrigo a dormir em tendas montadas em cima do passeio. Perante as vanguardas civilizacionais dos “direitos humanos”, Madalena Natividade, presidente da Junta, tem orientado a política dela no sentido de defender o bem-estar dos moradores: primeiro avisou, depois voltou a avisar, agora notificou os comerciantes para desarmarem as esplanadas. Ela sabe quem vota nela e sabe a quem deve prestar contas. No fundo, sabe a sua obrigação. Uma compreensão simples do conceito de soberania, cujos mistérios escapam ainda à grande parte portuguesa da humanidade.
Logo houve à direita quem visse ali um “problema de comunicação”. Sosseguei. Afinal, o mundo está como o conheço e como deve estar para um ser activo, isto é, com uma certa dose de obstáculos, e com a direita representada nos media por uma certa dose de comentadores semi-instruídos. Aparentemente, “boa comunicação” têm sempre os activistas e a extrema-esquerda, a quem basta soltar duas gritarias no Twitter e toda a gente lhes dá razão. Porquê? Porque os activistas e a extrema-esquerda gritam contra os carros, com os quais querem acabar. Argumentos woke nunca precisam de “boa comunicação”: os comentadores engolem e perfilham estes argumentos com toda a facilidade.
Um dos argumentos recomendava: “Esqueçam lá isso dos carros, vão ver como se anda em Paris, em Oslo, em Barcelona e nas cidades modernas”. Não é bem assim. As pessoas têm carro, ter carro é legal, pagam os impostos mais altos da Europa: quando compram (IA), quando não vendem o carro (IUC), e quando abastecem (60% em impostos por litro de combustível). Os comentadores deviam esguichar menos doutrina, e ter mais respeito pelas escolhas livres dos cidadãos, sejam eles “humanistas” ou moradores de Arroios.
Outro argumento, talvez o meu favorito (naquele atavismo de entender os comentários da “direita educada” como o meu ginásio mental privativo), explicava o seguinte: “Quando alguém compra uma casa sem garagem não compra o usufruto do passeio em frente; temos aqui um problema de direito de propriedade”. Podemos aceitar? Não. O que isto verdadeiramente diz é que os carros particulares deixaram de ser uma extensão da liberdade individual; agora só pode ter carro quem tiver casa com garagem. O cidadão é pobre?, é da classe média?, não o deixamos ter carro. Vá de bicicleta. Ou vá a pé. Ou vá nos transportes que o Estado controla, às horas que o Estado determina.
Um dado objectivo ajuda a compreender do que estamos a falar. Arroios tem, para toda a área da freguesia, menos de 8.000 lugares de estacionamento; e tem 11.830 dísticos de residente atribuídos. A diferença é de 3.840. Quer isto dizer que todos os dias, ou todas as noites, há 3.840 moradores de Arroios que não encontram um lugar para estacionar. Além de que temos a nossa preciosa EMEL, cuja missão é cobrar estacionamento e cobrar multas.
Ou seja, não, não estamos perante um problema jurídico. Estamos perante um problema social e político de interesses em conflito: os moradores, os comerciantes, as esplanadas, o estacionamento, o barulho. E os moradores não podem ser mandados dormir noutro lugar. De resto, estas querelas resultam sempre de interesses em conflito; e o papel dos governantes é tomar uma decisão política. Precisamente o que Madalena Natividade está a fazer. Errou? Nas eleições os moradores livram-se dela. Até lá, não tem de obedecer aos preceitos da liturgia woke. Na dúvida, aplica-se o princípio de Isabel Ayuso: os activistas estão contra a Presidente da Junta de Arroios? Excelente. Quer dizer que alguma coisa bem feita ela está a fazer.