Para onde vão as equipas quando são eliminadas do Mundial na fase de grupos? Para casa, dirá o leitor sensato. Os jogadores, um a um, sei para onde vão. Vão de férias para Ibiza, para os seus iates, as suas ilhas privadas, os resorts de luxo ou, no caso dos islandeses, de regresso ao consultório de dentista e à pesca do bacalhau. Mas as equipas, estes conjuntos irrepetíveis de 23 jogadores, mais treinadores, roupeiros, massagistas, fisioterapeutas, secretários técnicos, parapsicólogos, para onde vão? Terão como destino um limbo em forma de centro de estágio onde passarão a eternidade em sessões de recuperação, palestras e campeonatos de Playstation? Não haverá, no universo infinito, um lugar reservado às seleções precocemente eliminadas onde Manuel Galrinho Bento continue a caminhar com o auxílio das muletas e os seus camaradas ainda enverguem as camisolas de treino do avesso?

Repare-se no Peru. Trinta e seis anos de espera, milhares de adeptos eufóricos a viajar até ao outro lado do mundo, uma carreira inteira a sonhar com o momento de entrar em campo para ouvir o hino do país, para depois tudo acabar assim, com a certeza da eliminação ao fim do segundo jogo, e um terceiro cumprido com dignidade e orgulho, mas sem recompensas tangíveis? “Não, tem de haver algo mais para além disto” pensa o adepto inconformado pela brevidade do Mundial. Porém, não há. É só isto. Hão de restar as coleções da Panini, os sulcos das lágrimas sobre as pinturas faciais, a recordação de um golo belo e estéril, como o de Salah ou o de Carrillo, comemorado com pesar em campo e gratidão nas bancadas. Hão de restar algumas memórias.

Panamá. A equipa-mascote da competição, o Panamá é a prova definitiva de que os pormenores fazem toda a diferença. Agora é fácil dizer que ainda há equipas fáceis, mas bastava a Inglaterra não ter marcado seis golos e hoje andaríamos à procura de adjetivos para classificar a vitória do Panamá. Em certos momentos, os panamianos revelaram um entendimento medieval do desporto. Nos cantos, preferiram explorar uma variante de luta greco-romana. Deram porrada de criar bicho, particularidade que um comentador tratou logo de atribuir à cultura futebolística do país onde, como é sabido, os jogos são disputados com catanas, matracas e zarabatanas. O golo de Baloy entrou diretamente para o folclore dos mundiais. Por não ser insensível à grandeza da “pequena história” proponho a adoção generalizada da expressão “bonito como um golo do Panamá” para descrever todos os gestos simbólicos que não resolvem nada, mas significam muito.

Irão. Do melhor futebol que se pôde ver neste mundial. A marcação feita ao VAR foi exemplar e rendeu-lhe um golo contra Portugal. Elevaram o descontrolo emocional ao estatuto de arte. Na categoria de protesto sincronizado ninguém os ultrapassou na nota artística. Ao contrário do cinema contemplativo de um Kiarostami, os futebolistas exploram uma vertente mais xiita da existência. Buliram com os nervos de seleções tecnicamente muito mais evoluídas e voltaram para casa com uma pontuação decente, que lhes valeu uma receção apoteótica no aeroporto Khomeini, em Teerão. Aos adeptos, devemos a reabilitação da malfadada vuvuzela, cujo regresso foi efusivamente saudado por todos os portugueses que assistiram ao jogo pela televisão.

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Arábia Saudita. No final do primeiro jogo, em que foi trucidada por uma Rússia que, semanas antes, não apresentava sinais vitais, estava na luta pelo título de pior equipa de sempre num Mundial. Infelizmente, não mostrou competência para tanto.

Nigéria. A eterna esperança do continente africano para, finalmente, ganhar um campeonato do mundo, teve uma prestação ordeira, equidistante em relação ao talento das seleções da década de 90 e à turbulência da equipa de 2014, que mesmo assim passou a fase de grupos. Os golos de Musa contra a Islândia ficaram a saber a pouco porque pareciam o início de uma história que, depois de um prólogo falhado, não se poderia contar em apenas dois capítulos. A divina providência não concordou e cortou abruptamente a narrativa com um golo de Rojo. Um dia a Nigéria terá de encontrar arte e sabedoria para nos contar a história até ao fim.

Marrocos. Nós também já fomos assim. Muita técnica, elogios de toda a gente, “ai que pena terem de ir tão cedo, logo agora que a festa estava a ficar boa”, mas ninguém se chega à frente. É como nos autocarros quando entra uma grávida e os lugares reservados estão ocupados. Por maior que seja o civismo, ninguém quer levantar o rabo do assento. Por exemplo, porque é que a benemérita Dinamarca que, em conluio com a França, submeteu os adeptos a hora e meia de tortura audiovisual digna do Laranja Mecânica, não dá o exemplo e cede o seu lugar nos oitavos-de-final a Marrocos? A Suíça? Porque é que a Suíça não faz jus à sua neutralidade e não abdica em favor de Marrocos para os jogos de mata-mata? O futebol bonito pode ser muito bonito, mas eu desconfio sempre que o azar de uma equipa gera muitos viúvos. No fundo, o que estão a pensar, com a precária satisfação do sobrevivente, é “antes ele do que eu”.

Coreia do Sul. Cada participação no Mundial só serve para nos recordar, com espanto e admiração, o esforço sobre-humano que a FIFA teve de desenvolver para arrastar a Coreia do Sul até às meias-finais em 2002. Ficará para a história como uma das grandes epopeias transnacionais da história do futebol para a qual contribuíram com denodo dirigentes manhosos, árbitros corruptos e João Vieira Pinto. Desta vez, os sul-coreanos cometeram uma proeza que a terem de dividir os méritos com alguém, seria com a impassível desorientação dos alemães.

Alemanha. Este simpático grupo de jovens alemães foi traído pela inexperiência. Há por ali algum talento – veja-se o golo daquele rapaz que ainda vai dar muito que falar, Kroos – mas falta maturidade, eficácia e frieza na gestão das emoções. Viu-se que ainda não estavam preparados para as exigências de um campeonato do mundo. Mesmo tendo contratado um treinador alemão, conhecidos por serem disciplinadores implacáveis, não conseguiram controlar a impetuosidade de neófitos como o guarda-redes Neuer, que, além do mais, parecia desconhecer algumas das regras do desporto. Ficaram, no entanto, algumas boas indicações para o futuro. A continuar assim, pode ser que no próximo Mundial a Alemanha já seja capaz de passar da fase de grupos e cumprir o potencial que alguns analistas lhe reconhecem.