Dizem os “negacionistas” das alterações climáticas que a actividade humana é negligenciável à escala planetária e, portanto, o clima é comandado por ciclos naturais e mudarmos todos para carros eléctricos e lâmpadas LED não terá qualquer tipo de efeito no clima global.
Já há alguns anos que ando a apregoar quão disparatada é essa postura, mas finalmente encontrei argumentos para derrotar os mais teimosos. E teimosas.
Recordemos a conquista do continente norte-americano e a selvajaria que dizimou bisontes e indígenas. Note-se que estamos a falar de umas centenas – ok, talvez milhares – de pistoleiros que chacinaram, em duas ou três décadas, manadas de milhões e milhões de bisontes que pastavam tranquilamente nas pradarias deste vastíssimo continente. As mesmas manadas que viviam em perfeita harmonia com os nativos, que consumiam a carne necessária e aproveitavam as peles, não se vislumbrando o mais pequeno desequilíbrio durante os milhares de anos em que essa relação de predador-presa suportou as nações nativo-americanas das pradarias. Isto, claro, até navios à vela, depois movidos a vapor, começarem a descarregar europeus sequiosos de dinheiro nos portos de Boston, Nova Iorque, St. Johns e afins.
Por falar em navios, recordemos quando os ditos apontaram os arpões às grandes baleias, que foram dizimadas em meia-dúzia de décadas para lhes retirarem o óleo que iluminava as cidades europeias – e americanas – e que oleava maquinaria variada. Se não fosse a primeira guerra mundial ter acelerado os progressos tecnológicos que levaram à produção sintética – e barata – de lubrificantes industriais, não teria sobrado uma única baleia para os baleeiros japoneses, russos, noruegueses e islandeses caçarem com arpões mecanizados, depois dos dois conflitos mundiais do século passado. Mais uma vez, a acção humana revelou-se destruidora à escala global, ainda nos tempos em que era movida à vela e, portanto, antes da invenção dos motores que aceleraram essa exploração até ao limiar da extinção.
A mesma era industrial dotou-nos de soluções tecnologicamente extraordinárias, como o uso de gases para pressurizar o conteúdo de recipientes e facilitar a pulverização de substâncias. Refiro-me aos clorofluorcarbonetos, mais conhecidos como CFCs, que passaram a fazer parte dos ingredientes de todos os desodorizantes, lacas e sprays variados. Contudo, não tardou muito até as populações australianas e neozelandesas começarem a queixar-se de uma incidência particularmente elevada de melanomas. E não passou muito tempo até se perceber que isso se devia ao facto de a camada de ozono ter um buraco de dimensão épica no hemisfério sul e a proibição dos CFCs foi quase imediata – ênfase na palavra “quase”. Começou então a recuperação do buraco na camada de ozono, que ainda hoje vai fechando, devagarinho.
Este episódio ensinou-nos duas lições importantes. A primeira é que dá jeito ter pouca melanina na pele e ser descendente de europeus quando se começa a fazer queixinhas sobre o status quo. Sejamos pragmáticos, os pobres indígenas das ilhas do Pacífico bem se podem queixar, já com água pelos tornozelos, e ninguém lhes dá ouvidos. Se tivessem a sorte de ser mais pálidos e ter “Smith” ou “Jones” no apelido – em vez de “Vunitikaki” -, o mundo ouvi-los-ia com mais atenção.
A segunda lição é que a Humanidade consegue, pontualmente, demonstrar alguma humanidade e efectivamente resolver problemas. Não é frequente, mas acontece. E a recuperação do buraco na camada de ozono, com benefícios para a saúde de todos os habitantes no hemisfério sul, é um magnífico exemplo desse triunfo.
Poderia facilmente ficar por aqui, mas vou repescar o caso que me é mais próximo, por trabalhar em pescas há mais de duas décadas. Recordemos o que as frotas industriais europeias, russas e asiáticas fizeram aos principais stocks de peixes nos oceanos. Creio que até os tontos dos flat-earthers e anti-vaxxers admitem que os stocks de atuns, bacalhau, anchovas, sardinhas, espadartes, tubarões e tantas outras espécies levaram doses de pancada na ordem dos 80-90% nos últimos 50 anos. Não é preciso investigar muito para entender que esse estrago foi causado por aproximadamente 4 milhões de embarcações de pesca, mais coisa menos coisa.
A mesma linha de investigação diz-nos que temos aproximadamente 1,4 mil milhões de veículos motorizados no mundo. Arredondemos esse número para 1,5 biliões ao somarmos todas as fábricas, aviões e navios existentes no planeta.
Agora puxemos pelos neurónios e façamos um raciocínio simples:
- Alguns milhares de Buffalo Bills deram cabo dos bisontes e dos índios-americanos, com carabinas, em três tempos.
- Praticamente durante o mesmo intervalo de tempo, umas centenas de baleeiros rebentaram com as baleias dos oceanos em navios à vela e arpões manuais, esforço esse eventualmente aprimorado por navios e arpões mecanizados.
- Em menos de meio século, as latas de spray vendidas em prateleiras de supermercados e lojas de hardware abriram um buraco na camada de ozono que chegou à Austrália e Nova Zelândia. É só olharem para a metade inferior do globo na secretária dos vossos filhos para entenderem a magnitude desse buraco.
- Uns 4 milhões de navios de pesca comercial conseguiram rebentar com os principais stocks de pescado também em menos de meio século.
E podia continuar esta lista de maldades planetárias às mãos da espécie Homo sapiens sapiens, mas fiquemo-nos por estes exemplos.
Aconselho a repetição da leitura dos últimos pontos várias vezes e aproveito para perguntar se haverá por aí alguma mente brilhante que se atreva a questioná-los?
Diria que nem os negacionistas do holocausto são suficientemente audazes para questionarem estas realidades.
Assumindo que conseguimos – milagrosamente – estar todos de acordo quanto a esta lista, muito gostaria que alguém me explicasse como é que 1,5 biliões de veículos motorizados e o fluxo de carbono que os alimenta há cento e cinquenta anos não tem qualquer impacto à escala planetária??
Vejamos: o nosso planeta tem montes de carbono. Tem mesmo muito. Parte dele está na atmosfera, parte está nos seres vivos (como nós) e há muito – mas mesmo muito – que está parado no solo e subsolo há milhões e milhões de anos. Algum está em formato sólido, como o carvão; outro líquido, como o crude; e outro gasoso, como o gás natural.
Agora consideremos que a Humanidade, desde a Revolução Industrial, dedicou-se – com afinco – a tirar carbono do chão (nas suas várias formas) e a metê-lo na atmosfera. Sem parar. 24 horas por dia, 7 dias por semana, 52 semanas por ano, dez anos por década, dez décadas por século. Sem parar.
Correndo o risco de soar a disco riscado, volto a repetir: bisontes, baleias, buraco na camada de ozono e stocks de pescado rebentados mais ou menos em meio século cada um, por números reduzidos de intervenientes. E esperam que acreditemos que o triplo desse intervalo temporal multiplicado por sei lá quantas ordens de magnitude de actividade de remoção de carbono do chão para a atmosfera não tem qualquer impacto à escala planetária??
Mas que espécie de mentecapto é que não entende a lógica linear deste raciocínio e não consegue alcançar a realidade brutal traçada pelos números que descrevem a diligência obscena com que movemos carbono do chão para a atmosfera há cento e cinquenta anos?
Terminemos com um gráfico que se tornou num clássico quando se fala neste tema.
Há poucos dias vi um documentário sobre o ilustre Bill Nye, outrora apresentador do programa Science Guy, e conhecido comunicador de Ciência. Actualmente dedica-se, como a Greta Thunberg, Leonardo Di Caprio, Al Gore e tantos outros, a pregar estas realidades. Mas quis ir mais longe e foi ao Árctico ver – com os seus próprios olhos – o trabalho dos cientistas que ajudaram a criar gráficos como este.
Esses cientistas perfuram o gelo várias dezenas-centenas de metros abaixo da superfície e conseguem medir a quantidade de dióxido de carbono (CO2) na altura em que se formou cada uma das muitas camadas nesses cores, que é o nome dado aos tubos de gelo extraídos. Métodos relativamente simples – e replicáveis em qualquer laboratório – conseguem também estimar a temperatura a que cada camada se formou e o nível médio do mar mede-se por observação e datação directa de rochas.
A correlação destas três variáveis permite criar gráficos como este, que mostram o que é abundantemente óbvio para a maioria da população lúcida: mais CO2 na atmosfera significa temperatura mais elevada e, como tal, mais gelo derretido e nível do mar mais alto. O meu filho de três anos e meio já entende isto. O chimpanzé Gervásio, que nos ensinou a separar plástico do papel e vidro, também.
Mas há um segmento trumpista-bolsonarista teimoso da população que insiste em defender o indefensável e atacar o inatacável. E é à conta desses tontos – e tontas – que caminhamos alegremente para o abismo, quais rãs numa panela que não pára de aquecer. Esse segmento martela incessantemente na tecla “ciclos ciclos ciclos” que se vêem no gráfico e ignora o facto de a concentração de CO2 – que nunca passou dos 300 ppm em 400 mil anos – ter batido recentemente nos 400 ppm (ou partes por milhão).
Coincidência?
Já em 1912 um pequeno jornal neozelandês alertou para isto. E já na altura terão sido muitas as vozes que gritaram “mas que grande disparate!”
Cento e dez anos depois, os patetas continuam patetas e a comprometer a salvação do planeta.
Como pai de uma criança que vai herdar o planeta que lhe vou deixar, compete-me – todos os dias – fazer tudo o que está ao meu alcance para mudar o triste destino que lhe parece estar traçado, porque brincar com o sistema climatérico à escala global não é algo de que nos safemos sem pagar a mais cara factura que a nossa espécie jamais pagou.
E por falar em facturas, terminemos com a notícia que saiu no dia 2 de fevereiro de 2023 e que me impeliu a escrever estas linhas: as principais petrolíferas do planeta acabam de anunciar lucros épicos em 2022. Recordemos que se trata das mesmas empresas que nos meteram o gasóleo a 2 euros por litro porque, alegadamente, havia uma grande “falta de matéria-prima” causada pela guerra na Ucrânia, que celebrou um ano e que já meteu triliões de dólares nos bolsos das empresas que fabricam armamento, mas deixemos essa Caixa de Pandora sossegada. Mas que grande ironia, essa “falta de matéria-prima” ter originado a subida vertiginosa de preços que vemos no gráfico, que reflecte o preço pago pelo meu carro a gasóleo (sim, sou um daqueles nerds que tem a vida toda em Excel) e, contudo, está associada a lucros inéditos.
Não sei se a notícia dos lucros e o gráfico já vos permitiu chegar à mesma conclusão a que eu cheguei: às tantas temos aqui mais um fenómeno à escala planetária.
E chama-se desinformação.
E talvez esse fenómeno explique porque nunca houve tanta gente a acreditar que a Terra é plana – desde o tempo da Peste Negra – ou que as vacinas causam autismo, ou que os carros eléctricos são danosos para o ambiente por causa do lítio, ou que o hidrogénio-verde não serve para nada, ou que o clima do nosso planeta jamais poderia ser influenciado por algo tão minúsculo como a nossa espécie, que foi dos 2 aos 8 biliões em menos de um século e deu cabo dos bisontes, indígenas, baleias, peixes e ozono em meio século.
Às tantas, realmente o principal perigo não é o carbono. É a estupidez.
Biólogo marinho, doutorado em pesca comercial de tubarões e raias. Professor adjunto Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar, Politécnico de Leiria. Fundador e general manager da Flying Sharks. Direcção da Loving the Planet