Na quinta-feira, 17 de agosto, tocou-me o telefone pelas dez e meia da manhã. Alguém da CM-TV perguntava-me se tinha disponibilidade para ser entrevistado por causa do ‘Ataque de Tubarão’ recente e comecei por admitir que não sabia do que o senhor estava a falar.

Enquanto conversávamos, googlei o caso e lá percebi que um pescador comercial tinha levado uma dentada ao puxar uma Tintureira (também conhecida como Tubarão-azul, Quelha ou Prionace glauca) para bordo. Soube imediatamente o que ia dizer e combinámos que entraria em direto dali a breves minutos.

Neste ponto, tenho de agradecer ao staff da CM-TV o convite e mais ainda ao meu bom amigo Élio Vicente, do Zoomarine, que lhes deu o meu número. O Élio é um daqueles raros profissionais que, quando questionado sobre assuntos em que se sente fora de pé, em vez de inventar chuta para os profissionais. Há anos que partilhamos esta estratégia e já perdi a conta ao número de vezes em que me ligaram com questões sobre golfinhos, ou recuperação de tartarugas, e as encaminhei para o grande Élio.

Mas voltemos à reportagem na CM-TV, que começou escassos segundos depois de vestir uma t-shirt da Flying Sharks à pressa. Já agora, sempre aproveitava para divulgar o logotipo da empresa que transporta tubarões entre aquários, uma vez que ia falar da sua defesa. Paradoxal? Talvez. Mas já lá voltamos.

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Já em direto, a apresentadora pedia-me para comentar o terrível “ataque de tubarão” que tinha vitimado o pobre pescador, ao que respondi: “Imagine-se com um anzol na boca, a ser puxada para o convés de um barco onde está uma cambada de malucos a recebê-la à paulada…”

Depois comentei que eu próprio fui vítima de um “ataque de tubarão” num torneio de “pescar, marcar e libertar” em 2008. Só que, no meu caso, foi um “ataque de estupidez” porque, nesse dia, decidi tirar o anzol da boca de uma tintureira com quase 2 metros sem usar luvas. Já o fiz dezenas de vezes, mas, naquele dia, a meia dúzia de milhas ao largo de Sesimbra, a coisa correu (muito) mal. Ora toma 9 pontos no indicador esquerdo e uma cicatriz que ainda dá para embelezar umas histórias sobre a importância de se dar atenção ao que se está a fazer.

Mas deixemos a parte cómica deste episódio para falar de coisas sérias e começo por recordar estas linhas publicadas aqui no Observador em outubro de 2020.

Resumo rápido e uns dados novos, em jeito de #TLDR:

  • A pesca comercial de tubarões em Portugal envolve aproximadamente 5.000 toneladas por ano de desembarques em lotas nacionais.
  • Graças a um trabalho que estou a desenvolver com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, sabemos que, entre agosto de 2019 e dezembro de 2021, foram capturadas, por navios portugueses, 3.600 toneladas de Espadarte, 13.600 toneladas de Tintureiras e 1.474 toneladas de Anequins. Durante o mesmo período, foram desembarcadas 72 toneladas de Anequins em lotas nacionais, o que significa que as restantes 1.402 foram desembarcadas noutros países e posso afirmar – com elevado grau de segurança – que a esmagadora maioria corresponde a Vigo.
  • Tipicamente o preço de venda em lota ronda os 1,5 €/kg para as Tintureiras e 5,0 €/kg para os Anequins.

Estes valores demonstram que os rendimentos da pesca destas espécies, que envolvem cerca de duas dúzias de palangreiros, estão longe de ser uma fatia significativa do nosso PIB. Um “palangreiro”, já agora, é um navio de pesca comercial que coloca uma linha de pesca no mar (o “palangre”) que tem vários quilómetros de comprimento. A espaços regulares, são colocados vários milhares de linhas mais pequenas (“estralhos”), que têm um anzol na extremidade. Tipicamente, quando se termina de colocar um palangre no mar, está na hora de regressar ao início e começar a recolha do mesmo. Durante as várias horas (por vezes dias) em que os anzóis estiveram na água (com isco), vários espadartes, tubarões e outros peixes de grande porte, morderam o anzol e ficam a nadar – ou morrem – até serem recolhidos para bordo. Dadas as fileiras de dentes muito afiados destes animais corpulentos, que se debatem num estertor frenético quando são descarregados no convés, normalmente são recebidos com pauladas, ou tiros de carabina, para não colocarem a segurança da tripulação em risco.

No filme The Perfect Storm, o George Clooney e Mark Wahlberg ilustram este processo de forma sublime, não só a componente técnica mas também a humana e social, todas elas idênticas ao cenário que vemos em Portugal. À conta disso, todos os anos revejo esta obra com os meus alunos de Tecnologias de Pesca e comentamos a mesma, no final.

Agora façamos uma pesquisa na página “Estatísticas Diárias”, da Docapesca e faremos descobertas interessantes.

A maior frota de pesca de palangre do país está sediada em Peniche, por isso façamos lá uma busca por “Tintureira”: 5,18 €/kg. Hmmm… Estranho. A Tintureira nunca atinge um preço tão alto…

Agora busquemos “Anequim”. Não aparece. Pois claro, porque o Anequim entrou para a convenção CITES em 2020 e, como tal, não pode ser desembarcado desde o início de 2022. Bate certo.

Agora passemos para Sesimbra, onde vários palangreiros também descarregam as suas capturas, e busquemos “Anequim”. Nada, como seria de esperar. E “Tintureira” mostra 1,67 €/kg, que é um valor perfeitamente normal para a espécie.

Em nenhum dos portos aparece “Espadarte”, o que é normal nesta altura do ano, porque a quota desta espécie é muito baixa e, normalmente, esgota-se no início do ano. Mas ele anda aí nos supermercados, o que significa que foi importado, ou… Esse facto tornou-se famoso no início do novo milénio, quando uma quota de 240 toneladas foi dividida por 40 embarcações portuguesas, o que significa que cada uma recebeu 6 toneladas. Ora, esse é o valor que tipicamente é capturado numa saída de pesca de um palangreiro, que tipicamente duram 2 a 3 semanas e cobrem águas açorianas, ou mesmo do Atlântico Sul, ocasionalmente dobrando os cabos para o Índico ou Pacífico, embora isso seja mais raro. Curiosamente, no ano em questão também não faltou Espadarte no mercado, e note-se que as embarcações fazem umas 20 saídas por ano. Isso levou-me a pedir à minha amiga Leonor Sousa o cartoon seguinte, porque muitos contactos off the record revelaram-me que os Espadartes (já sem quota de pesca) estavam a ser descarregados como Tintureiras, que não tinham – nem têm – quota.

Mostrei este cartoon ao mundo, pela primeira vez, no dia 6 de março de 2008, numa reunião na sala ASP A3E2 do Parlamento Europeu em Bruxelas, que se destinou a promover o lançamento de um “Shark Action Plan” Europeu. A eurodeputada espanhola Carmen Fraga, uma das organizadoras do evento, tentou desligar-me o microfone quando comecei a denunciar este escândalo. Tive a sorte de outros organizadores lhe terem dito para me deixar continuar. À saída, colegas de instituições de investigação no domínio marítimo ralharam comigo “Tu estás maluco?? Então tu vens p’r’aqui falar disto??” Na altura, como hoje, dei por mim a pensar “Mas então onde e quando é que se fala disto??”

Os valores da Docapesca que avancei atrás sugerem fortemente que está na hora de pedir à Leonor que faça outro cartoon, desta vez com um Anequim disfarçado de Tintureira, porque aqueles “5,18 €/kg” em Peniche tresandam a Anequim, o tal cuja pesca está proibida, e não a Tintureira.

Se tiverem curiosidade em saber mais, poderão descarregar a minha tese de doutoramento, que está repleta de valores destes, desde 1986 a 2006.

Outros artigos, como este e este, têm análises a dados mais recentes e ajudarão numa noite de insónias.

Agora tentemos resumir e contextualizar tudo isto, e recomendo novamente a leitura do artigo que partilhei inicialmente, que é importante para se entender o que está em jogo.

Vale a pena matar milhões de Tubarões todos os anos para ganhar meia dúzia de milhões de euros, sendo que a maior fatia dos lucros fica em Vigo?

Não estaria na altura de olharmos para os nossos amigos açorianos em Santa Maria e no Faial, que levam mergulhadores do mundo inteiro a mergulharem com Tubarões-baleia (Rhincodon typus), Jamantas (Mobula tarapacana), Tintureiras (Prionace glauca) e Anequins (Isurus oxyrinchus)?

E que tal se olhássemos para estes países que estabeleceram “Shark Sanctuaries”, com benefícios financeiros para as populações locais na ordem dos biliões de euros?

Conseguem imaginar a imagem internacional de Portugal, o país que dobrou o Cabo da Boa Esperança, que descobriu o caminho marítimo para a Índia e o Brasil, e que deu novos mundos ao mundo, quando este anunciar que as águas portuguesas são um Shark Sanctuary, onde a captura destes animais é proibida?

Entendem que isso nos coloca no topo da Conservação do ambiente marinho a nível mundial?

Não deixa de ser irónico que esta medida esteja a ser proposta pelo fundador e gestor de uma empresa que dá pelo nome de “Flying Sharks”, ou “Tubarões Voadores”, já que transportamos estes animais entre aquários pelo mundo inteiro. Esta prosa já vai longa, por isso recomendo apenas a leitura destas linhas, que explicam como o dito gestor da Flying Sharks, e tantos aquários por esse mundo fora, estão bem mais empenhados na Conservação (o “C” maiúsculo foi propositado) e na protecção do ambiente marinho, do que muitas ONGAs, cujos orçamentos operacionais vêem a sua esmagadora maioria atribuída a vencimentos do staff e uns míseros 2~3% a medidas de conservação efectiva. Mas, como referi, estas linhas já vão longas, por isso deixemos essa Caixa de Pandora para outro dia.

Para já, termino como terminei o artigo de 2020, deixando-vos alguns endereços de email para onde poderão enviar mensagens a apoiar a ideia de Portugal se tornar num Santuário de Tubarões. Porque, lembrem-se, uma petição com 70 mil assinaturas é um documento PDF com 70 mil nomes. Mas 70 mil mensagens de email na Inbox já é outra conversa…

https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/area-de-governo/economia-e-mar/contactos

https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/primeiro-ministro/contactos

https://www.presidencia.pt/contactos/formulario-de-contacto/

Os Tubarões portugueses agradecem a vossa ajuda e eu também.