O ex-Presidente do IPMA, Professor Manuel Miranda, voz insuspeita e homem ponderado em matérias que bem domina, escreve um artigo no Público intitulado “É preciso terminar o estado de negação” que, de forma muito clara, procura chamar a atenção para o óbvio. Cito um parágrafo desse artigo, que tudo resume: “… Se queremos compatibilizar esta situação com a vida pendular e regular que precisam as nossas comunidades, necessitamos absolutamente de fazer “médias no tempo”, guardando água quando está disponível para utilização mais tarde e “médias no espaço”, transferindo recursos em água doce de onde existe em quantidade suficiente para onde é precisa…”.
Vem esta minha referência a propósito da situação inaceitável a que se deixou chegar a falta de água em diversas regiões do sul do País, em particular no Algarve e no Sudoeste Alentejano. Meço bem as palavras ao dizer que a situação atual resultou de uma escolha, que foi a da ausência de decisões e de ações que podiam (e deviam) ter sido tomadas e implementadas, e não resultou de uma qualquer fatalidade não prevista para a qual não existissem soluções. Tenho, contudo, a esperança de estarmos mais próximos de ver o efeito da “água mole em pedra dura”, que se traduzirá (mais cedo do que tarde, assim se espera) no abandono, por parte do Governo e da APA, desta inação em matéria de tomar as decisões que garantam a existência de água nas regiões do País mais afetadas pela sua escassez e irregularidade.
Para quem possa estar menos atento, recordo que durante 6 anos e 4 meses (período entre a tomada de posse do primeiro Governo liderado por António Costa, em novembro de 2015, e o final do seu segundo Governo em março de 2022), as políticas públicas e o discurso dos seus responsáveis em matéria de escassez de água resumiam-se a dizer que os rios nascem e devem correr livremente para o mar. Falar em novas barragens era proibido e a palavra transvase não era pronunciável. Quem o fizesse, era escarnecido, e só poderia estar de conluio com quem tinha em mente a destruição do planeta!
Dir-se-á que tal postura decorria da solução política que suportou os referidos Governos. Pelo menos no caso do Governo assente na “geringonça” (o primeiro dos dois acima referidos), já que a posição do Bloco de Esquerda, nestas matérias, é bem conhecida. A Dra. Catarina Martins[1] chegou a dizer (cito) “temos barragens a mais, as barragens provocam evaporação, portanto nós estamos sempre a perder água e isto é um problema muito complicado”. No entanto, essa solução política não foi uma fatalidade: foi sim uma escolha, com cujas consequências (boas ou más) temos que arcar.
Em particular, eventuais cortes no abastecimento de água no Algarve em 2024, para os diversos usos, só irão ocorrer porque quem tinha a responsabilidade para decidir nesta matéria optou por não agir: 8 anos seria tempo mais do que suficiente, mesmo à escala da indecisão que nos carateriza. Como refere o ex-Presidente do IPMA no seu artigo do Público, “não chegámos aqui de repente”. A ideia de que a situação de déficit (que resulta da diferença entre disponibilidades e necessidades de água numa determinada região e num determinado momento do tempo) se resolve apenas com o aumento da eficiência no uso da água e com a redução das suas perdas (dimensões cuja importância não deve ser menosprezada), é errada, e conduziu-nos ao ponto em que estamos. Foram mais de seis anos de combate ativo contra estas soluções (pois nos últimos dois, a predisposição para aceitar resolver o problema melhorou um pouco), sempre à espera que um ano mais chuvoso viesse suavizar as coisas ou que o consumo diminuísse porque dava jeito. Este ano hidrológico tem sido relativamente chuvoso, mas a manta ficou definitivamente curta demais.
Uma parte importante das soluções são conhecidas, muitas delas foram estudadas há várias décadas, e têm sido revisitadas recentemente, como é o caso do excelente artigo publicado no Agroportal de autoria do Manuel Campilho, do Jorge Froes e do Miguel Campilho. Aprecio pouco a linguagem demasiado gráfica que fala da necessidade de construir “autoestradas de água” (por isso mesmo implico também com os “comboios de frio polar” e “os rios atmosféricos” que nos assombram). Mas que se faça rapidamente o que tem que ser feito: que se aumente a capacidade de armazenamento (barragens) e que se construam os transvases necessários, para que possamos fazer “médias de água no tempo” e “médias de água no espaço”. E que se faça depressa, e com o pragmatismo que a situação impõe, utilizando todo o conhecimento e tecnologia que permite minimizar impactos ambientais ou outros daí decorrentes. Numa palavra: assuma-se que temos que ter uma clara política de adaptação à nova realidade, adaptação essa que não pode (não deve!) passar pelo abandono de uma parte do território à sua sorte. Hoje o Algarve, amanhã se verá qual.
Não nos deixemos enganar por anos mais chuvosos: tudo aquilo que se fizer já virá tarde para aqueles que, no Algarve, venham a sofrer na pele a imposição da redução nos consumos de água este ano. Mas tudo o que não se fizer, irá contribuir para um cenário de desertificação crescente do território e de penúria económica e social. As escolhas serão feitas.
[1] Afirmação proferida por Catarina Martins num debate, no dia 3 de setembro de 2019, com a então líder do CDS-PP Assunção Cristas.