Em 2018 fui um dos promotores da proposta para uma Assembleia Deliberativa dos Vizinhos do Areeiro em que se propunha à Câmara de Lisboa (CML) que, a partir de uma base de eleitores, fosse seleccionado aleatoriamente um grupo de cidadãos que formasse uma Assembleia Deliberativa que durante alguns dias e com acompanhamento de Facilitadores e Peritos pudesse apresentar propostas à autarquia, sendo o tema escolhido por votação online. Na proposta sugeria-se a criação de um orçamento plurianual para a implementação destas propostas e que a assembleia fosse constituída e se reunisse nas mesmas instalações onde hoje se reúne a Assembleia Municipal de Lisboa.

O objectivo desta proposta visava trazer à democracia local novas formas de fazer política mas acredito também que um novo executivo, antes de enveredar por este tipo de iniciativas, poderia ter começado pelo princípio e respondido aos pedidos e questões pendentes colocadas pelos cidadãos (algumas há anos), reduzir os prazos de resposta e, no processo, facilitar o acesso à documentação autárquica (designadamente por meios digitais) e só depois implementar em escala um tipo de propostas mais inovadoras como esta.

Depois de contribuir para melhorar a forma como a autarquia exerce a transparência e a comunicação com os cidadãos, e porque defendo, já há bastantes anos, formas de aumentar a qualidade da democracia e métodos de democracia participativa, entre as quais a adopção de sistemas de democracia deliberativa e aleatória, seria assim normal que seguisse com interesse a proposta do actual executivo para a instalação de um Conselho de Cidadãos.

Nesta proposta do executivo de Carlos Moedas a assembleia está aberta às pessoas com mais de 16 anos que residam ou trabalhem em Lisboa. É aqui que reside a minha primeira reserva: o facto de se permitir a participação a quem trabalha na cidade é, a meu ver, um erro (que já se comete nos orçamentos participativos) e que vai criar distorções nos resultados finais, já que trabalhar 8 horas num escritório não é idêntico a viver na cidade. Se fossem experiências idênticas, todos poderíamos optar por, nas eleições nacionais, europeias e locais votar ou no local de trabalho ou no de residência e isso não esteve no espírito do Legislador nem ocorreu em nenhum país do mundo.

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Encontro outra reserva no modelo de inscrição, que parece depender apenas da boa fé de quem se inscreve, uma fragilidade que permite que um grupo organizado se possa inscrever em massa, contornar os filtros de representação e distorcer, assim, o produto das deliberações. Isto já foi observado nos Orçamentos Participativos embora aqui exista um mecanismo de compensação através da organização nas comunidades locais de assembleias participativas. Contudo, no modelo adoptado pelo executivo da Câmara falta este mecanismo e consequentemente teremos um Conselho de Cidadãos que pode ser facilmente invadido por um lobby ou grupo de militantes ou activistas de uma dada causa.

Outra lacuna do modelo de Lisboa reside no “sorteio” dos participantes do “Conselho”, e isto apesar dos “critérios de idade, sexo, freguesia de residência ou trabalho e nível de escolaridade, por forma a espelhar a diversidade da população de Lisboa“. O sorteio é realizado a partir de uma base de dados composta por todas as inscrições realizadas. Ora bem: isto não é um sorteio a partir de um universo possível mas um sorteio a partir de uma lista de inscritos, ou seja, uma extração a partir de uma lista fechada. Isto contorna a aplicação de um dos conceitos mais interessantes deste tipo de assembleias, que seria um sorteio real, por exemplo, por via postal, chamadas para números aleatórios (como se fez em França) ou usando outra base de dados como se faz na em Ostende (Bélgica) e não uma base de dados de interessados que, necessariamente, vão trazer esse interesse para condicionar os resultados das assembleias. Isto vai distorcer o produto final dada a existência de uma inclinação participativa forte quando estes sistemas visam, precisamente, trazer para o centro da decisão política aqueles que pouco ou nada participam na vida da sua cidade.

Na democracia deliberativa a igualdade é essencial. Mas não haverá igualdade se a base de selecção for a de inscritos e não a total, de todos os interessados. Quem participa ativamente na vida cívica da cidade sabe como, ao fim de algum tempo, todos se conhecem uns aos outros e são “sempre os mesmos”. O mecanismo de inscrição vai intensificar este fenómeno e fechar algo que devia ser aberto.

Outro erro no processo encontra-se na escolha de “50 pessoas por sessão, sendo realizado pelo Fórum dos Cidadãos, um parceiro da sociedade civil independente. A participação não será remunerada”. Esta participação deveria ser remunerada. Esse, aliás, é o modelo que é mais adoptado em experiências deste tipo e tem como intenção compensar os participantes pelo seu tempo, dado que muitos não estarão interessados em participar se isso representar uma perda de rendimentos. A referência ao financiamento, por parte da CML, do transporte não é – nem de perto – suficiente. Mesmo nestas coberturas laterais omitem-se as refeições, uma vez que o conselho se estende durante dois dias e que os participantes estarão longe das suas residências e famílias. A remuneração iria criar um compromisso de qualidade e empenho e é isso que sucede, por exemplo, nos EUA e em Inglaterra com o trabalho dos jurados. Remunerar seria também uma forma de atrair a estas assembleias os cidadãos economicamente mais desfavorecidos que, por regra, estão ausentes destas experiências de participação política e cívica.

Encontramos outra objecção no ponto em que se refere que “A Câmara de Lisboa pretende realizar, pelo menos, uma sessão por ano. Os participantes e os temas, anunciados com um mínimo de duas semanas de antecedência, serão diferentes de cada reunião. De acordo com a autarquia, os assuntos vão focar-se nos grandes temas estruturantes para a cidade, como o clima, mobilidade, higiene, educação, economia ou saúde. Para cada sessão é proposta uma pergunta, em torno da qual os cidadãos devem trabalhar, podendo os participantes optar por uma abordagem diferente ao tema proposto“. Sem compromisso real e concreto de execução este formato arrisca-se a ser apenas mais uma forma de criar frustração nos cidadãos. A meu ver, este método seria tanto mais eficaz quanto maior fosse o compromisso de seguimento das propostas que saíssem destes fóruns.

Tenho igualmente grandes reservas quanto à capacidade por parte da CML para escolher os temas que são apresentados aos conselhos. O que os subscritores desta iniciativa dos Vizinhos previam era que o tema fosse “previamente votado na Internet por todos os lisboetas que queiram participar nessa fase do processo deliberativo” mas se é a própria CML a definir o tema está em condições, desde logo, de condicionar o debate aos temas que lhe interessam e para o afastar daqueles que politicamente não lhe interessam.

Encontro outro problema na referência aos “grandes temas“: um grupo de cidadãos, durante dois dias (quantas horas? 8? 14?) não pode recolher informação suficiente de peritos suficientes para deliberar de forma adequada sobre “grandes temas“. Quatro ou cinco dias seria mais produtivo.

Se o modelo se debruçasse sobre “micro-temas”, como, por exemplo, as ciclovias numa dada zona da cidade ou uma determinada urbanização polémica, isso iria promover um componente reativo e que favorece a polarização e não o estabelecimento de consensos, que é o essencial deste tipo de propostas. Talvez um ponto intermédio entre os “grandes temas” e os “micro-temas” fosse mais adequado do que aquele que consta do modelo que será seguido em Lisboa.

Não vi que o regulamento de instituição e funcionamento dessas assembleias fosse aprovado em Assembleia Municipal nem aliás, sequer, que exista. Então de onde vem este financiamento? Se não existe isto irá limitar o que pode ser feito e todo o processo pode não ser mais do que uma acção de marketing político. Uma assembleia deste tipo deveria ser institucionalizada e fazer parte da própria estrutura de governo da cidade, não algo que funciona ao sabor da gestão autárquica do momento.

Outro erro do Conselho de Cidadãos de Lisboa reside na forma como se faz a passagem à prática das deliberações do Conselho, uma vez que esta é totalmente discricionária e depende da decisão do presidente de Câmara, que não tem maioria nem no próprio executivo nem na Assembleia Municipal e, logo, não tem condições políticas para garantir o seu cumprimento. As propostas poderiam ser entregues à Assembleia Municipal para votação ou servirem para um referendo local, o que resolveria o problema da discricionariedade e da muito provável falta de eficácia destas propostas.

Por outro lado, estas experiências de democracia deliberativa não devem excluir as formas já conhecidas e ensaiadas de Democracia Participativa: os OPs, os referendos locais acessíveis, os referendos revogatórios de mandatos, o extinto Lisboaideia, as intervenções dos cidadãos nas reuniões descentralizadas, na AML e nas assembleias de freguesia devem ser valorizadas e tornadas mais eficazes. O OP de Lisboa pode e deve ser desenvolvido e devemos ter OPs em todas as freguesias da cidade.

Não podemos ter apenas democracia de quatro em quatro anos. Esta experiência é um passo nesse sentido, mas a forma como está a ser dado poderá criar desilusão e prejudicar, a prazo, esta necessária reforma da democracia local de que precisamos.