Não haverá solução se abordarmos as questões da energia do futuro como as temos abordado até agora. Novas soluções implicam novas formas de pensar e estar. Os negacionistas da necessidade da transição e da possibilidade da transição, exploram precisamente o chamado “sentido comum” para nos desencorajar, com falinhas mansas.

Um bom exemplo é o dos veículos eléctricos. Ouvimos com frequência dizer “como podem os veículos eléctricos, tão poucos e tão caros, ser a solução para o novo futuro?” “… para não falar nas baterias?”.

Contudo serão certamente uma parte da solução. Não podem é ser vistos como a única tecnologia para resolver o problema.

Em termos técnicos, o que temos é de electrificar a economia de forma crescente. Aumentar muito o recurso à electricidade, porque ela é facilmente (e da forma mais barata) produzida por energias renováveis [1]. E, fazê-la chegar a todo o lado, passa por uma infra-estrutura que já existe (ainda que tenha de ser reforçada). Outra vez um investimento relativamente baixo. A União Europeia fala em passar de ~20% (energia final, hoje) para >40% em 2050! Para o sector dos transportes, mas também para a indústria e para a climatização de edifícios e outros usos (a propósito: já substituiu o seu fogão a gás pela placa de indução?).

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No caso dos veículos eléctricos [2](VE) o impacte é realmente grande. Atente-se apenas nos veículos motorizados (automóveis, etc). Quando se usa uma unidade de energia final eléctrica renovável para mover o veículo, deixa-se de necessitar de mais de 5 unidades de energia primária (gasolina, gasóleo, gás…). Isto é, há medida que houver mais VE, a redução na energia primária fóssil é fortíssima.

Mas aqui também haverá outras evoluções: o recurso mais alargado a transportes públicos eléctricos, o desenvolvimento do uso de veículos de duas rodas, eléctricos ou sem recurso a motores, associado a uma mobilidade nos centros urbanos muito diferente da actual. E ainda uma evolução para menores potencias, menores consumos, etc. sem que verdadeiramente tenha de haver menos conforto ou qualidade de vida

Esta evolução vai trazer uma redução de custos dos combustíveis fósseis, por ficarem mais abundantes e como arma para combater a transição (o ponto de vista das petrolíferas). Temos de encontrar alguma forma de contrariar isso, com taxas ao carbono emitido, por exemplo, mas também com uma mudança de atitude e cultura dos utilizadores: combustível está mais barato, mas não devo abusar!

Em países em vias de desenvolvimento, esta oferta a custo mais baixo será um convite ao consumo ainda mais forte, mas isso não nos deverá desanimar, encontrando formas (políticas, criação de emprego, nova indústria) de aumentar a penetração do transporte eléctrico (colectivo e individual) nesses países também. Difícil? Sim, mas não impossível.

Haverá sempre ganância, falta de escrúpulos e ignorância no caminho do futuro. Mas temos de avançar, apesar disso.

E a questão das baterias. Quantas vamos necessitar?

É uma dúvida compreensível, mas há muitas outras formas de armazenar electricidade: sob a forma de energia potencial em água bombada de volta às barragens, sob a forma de calor, etc. E há muitos tipos de baterias, já em uso e desenvolvimento, reduzindo a pressão que a mineração de novos materiais para o seu fabrico vai trazer no futuro.

E há a bateria dos próprios veículo (Vehicle to Grid -V to G). A maior parte das pessoas conduz em média, por dia, menos de 50Km. As baterias de hoje permitem armazenar energia para mais de 500km. Isto é, podem servir para fornecer energia às casas ou à rede em geral. Novas soluções e novas posturas, como referíamos…?  Casas com painéis PV no telhado (PV: a forma mais barata de produzir electricidade, hoje), gerindo a energia do carro para fornecer a da casa (tem o suficiente para 4 ou 5 dias de consumo, se não houver sol durante 3 ou 4 dias seguidos!)

Mas teremos electricidade suficiente, hoje, para uma aposta de fundo nos veículos eléctricos?

No nosso país temos 4.6M de automóveis, a percorrer em média, 50km por dia. Se, de hoje para amanhã, transformássemos 20% desses automóveis em veículos eléctricos [3], a electricidade necessária seria 15kWh para cada 100km o que resultaria em 2.5TWh em cada ano, i.e. 5% da produção anual total de electricidade em Portugal! Tranquilo, certo?

Claro que temos de melhorar a infra-estrutura para carregamento em rua…

Uma nota sobre o PV neste contexto é a de quando tivermos produção descentralizada nos telhados das nossas casas (500 000 telhados com 3kW de potência cada), também produzimos aquela quantidade de energia eléctrica, em cada ano.

Certo. E a climatização de edifícios? Os cidadãos dos países em desenvolvimento vão querer ter ar condicionado como os do Texas de hoje!? Não será isso um direito? Como vai ser isso possível?

Ter conforto é um direito. Mas ter conforto “à texana” é uma estupidez. Mais uma vez, ter electricidade renovável é parte da solução aqui também, mas não chega. Temos de praticar a fundo a suficiência e a eficiência energéticas. Nestas cabem o bom senso (para quê o exageradíssimo e esbanjador nível de arrefecimento dos edifícios no Texas, com temperaturas de ar interior no Verão de 18ºC? Apenas uma simples mudança no seu “set point” teria um impacte potencial enorme…) e as boas praticas de construção, a dos edifícios melhor orientados, construídos, isolados. Cabe também a revolução que se avizinha do recurso crescente a novos materiais, como a madeira [4] e outros, capazes de permitir o sequestro directo do CO2 da atmosfera (o cimento da construção convencional é um dos principais responsáveis pelo excesso de CO2 na atmosfera) e de proporcionar um conforto sem precedentes.

Em conclusão: temos tecnologia mais do que suficiente para fazer a transição energética de que necessitamos. E com custos muito inferiores aos de “não fazermos nada”!

Mas também, muito para lá da tecnologia, temos de ser capazes de pensar outros valores sobre conforto, qualidade de vida, qualidade do ar, biodiversidade, sustentabilidade.

Não podemos manter a mesma lógica, a mesma atitude de consumidores de energia, como fomos habituados a ter, nem podemos dar ouvidos a que realmente não há nada a fazer para resolver os problemas da transição, como, por exemplo, quando ainda nem começamos e já nos vêm assustar com a falta disto ou daquilo daqui a 20 anos. Trata-se de uma nova economia, com novos “players” e outros jogos de interesses, algo que não está a agradar nada aos que estão instituídos.

[1] Com frequência ouvimos falar do Nuclear como parte da solução do futuro. Considero que não, ver por exemplo, o e-book Descarbonizar a Economia, a Energia e o Futuro. O nuclear é demasiado caro e insustentável, sobretudo pela herança de resíduos radioactivos que deixa para as gerações futuras, sem nenhuma capacidade de produzir uma solução de larga escala realmente útil para todo o mundo e a tempo de ter impacte sobre as alterações climáticas. Na melhor das hipóteses será uma solução cara, de muito ricos para muito ricos. Hoje corresponde a menos de 10% da electricidade produzida no mundo maioritariamente em reactores perto do limite de idade
[2] Há muitas mais possibilidades para serem exploradas neste sector, incluindo os biocombustíveis e os combustíveis solares como o H2
[3] O total da electricidade (energia final) anual em Portugal é ~ 50TWh (10 12 Wh).

[4]  https://www.vangproperties.com/media/5949/ebook_c_cv_pt.pdf