O Papa Francisco publicou finalmente a tão esperada Exortação Apostólica Pós-Sinodal com o título Amoris Laetita (A Alegria do Amor).
Importa esclarecer que não se trata de uma exortação sobre a doutrina do matrimónio, mas sobre o amor. O amor na família. E esta tem que ser a chave de leitura de todo o documento. Não se trata de pôr em questão a doutrina da Igreja sobre o sacramento do matrimónio, mas precisamente o oposto: praticar a doutrina oferecendo a Alegria do Amor de que a Igreja é portadora. Não uma alegria qualquer, mas aquela que é fruto do Espírito Santo.
Uma questão que a muitos intriga refere-se ao facto de este Papa, que é direto e claro em tudo e com todos, aparecer aqui não tão incisivo. Porque não esclarece simplesmente se os católicos que se divorciaram e voltaram a casar civilmente podem ou não ter acesso aos sacramentos? É que, de facto, a Exortação parece poder dar azo a diferentes interpretações.
A razão é simples: Francisco não o diz porque não quer. E esta é, talvez, a mais profunda reforma que o Papa quer implementar na Igreja.
Esta reforma, talvez não sempre diretamente explicitada, mas presente em todos os escritos, gestos e palavras do Papa é a da descentralização. Profundamente conhecedor da Tradição da Igreja, e vindo “do fim do mundo”, como ele mesmo afirmou, Francisco sabe por experiência própria que a excessiva centralização nem sempre ajuda ao exercício da ação da Igreja. Deseja, assim, conferir mais autonomia às Conferências Episcopais e aos bispos locais para que a Igreja possa recuperar a proximidade às pessoas concretas de cada cultura, país e diocese.
O desejo de descentralização do Papa é claro: “quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais” (AL3), já que, dada a diversidade das culturas, existem “maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais” (ibid.).
Já no fim do documento, e fazendo eco da Relatio finalis do Sínodo, Francisco reitera que “os sacerdotes têm o dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo” (AL300). Por isso, não se espere “desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos” (ibid.).
A recusa de legislar e verificar tudo a partir de Roma devolve ao bispo local um papel sempre mais relevante na saudável e coerente aplicação da doutrina universal à igreja da sua diocese. E dá à Igreja, não só a flexibilidade necessária para se aproximar das situações e pessoas concretas, mas dota-a daquela vivacidade com que Francisco sonha desde o dia em que foi eleito Papa.
O preço a pagar é o do discernimento, que se revela aqui a palavra de ordem. Certamente, há que evitar a todo o custo “o risco de que um certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla” (AL300). Por isso, “este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja” (ibid.), não fosse o caso de se veicularem “mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente exceções, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores” (ibid.).
Francisco é ciente de que este tipo de exercício do Papado não agrada a todos. A atitude mais fácil seria a de decretar uma norma geral obrigando à obediência de todos os católicos. Por isso, explica que compreende “aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade” (AL308).
Quando se refere concretamente às situações mais complexas, de fragilidade ou irregulares, que não cumprem plenamente a norma doutrinal da Igreja, o Papa convida fortemente a acompanhar, discernir e integrar. O discernimento é essencial porque “uma vez que o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos” (AL 300). Ora, em clara oposição ao que aqui é afirmado, hoje, todas as pessoas que se divorciaram e voltaram a casar civilmente, sem exceção, estão impedidas de aceder aos sacramentos. Mas, de facto, uma pessoa que objetivamente não cumpre a lei “pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa” (AL301). Por isso, “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações irregulares, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” (AL305).
Mas Francisco vai muito mais longe: “já não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada irregular vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (AL301). Aliás, “é possível que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja” (AL305).
Mas até onde pode ir esta ajuda? Até onde pode ir a integração dos recasados? Para responder, o Papa acrescenta uma nota de rodapé que não deixa margem para dúvidas: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor. E de igual modo assinalo que a Eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos” (nota 351).
Por todo o processo sinodal e pelo que fica dito ao longo desta Exortação, revela-se claro o desejo do Papa Francisco acerca deste assunto. A Igreja, através das suas estruturas locais, deve fornecer instrumentos de acompanhamento, discernimento e integração das pessoas recasadas. E essa ajuda pode, nos casos em que o discernimento assim conclua, chegar ao acesso aos sacramentos.
Esta é, aliás, a leitura que faz o Arcebispo Vincenzo Paglia, presidente do Conselho Pontifício para a Família, numa entrevista concedida ao Corriere della Sera (digital), no passado dia 9 de Abril. Com efeito, afirma o prelado que não passa a haver uma regra que permita os recasados comungarem. Objetivamente os recasados não podem aceder aos sacramentos. Mas, diz ele, “não está dito que subjetivamente seja a mesma coisa. Não existe a situação em abstrato; existem milhões”.
Por isso, “o bispo deverá ajudar os confessores e os padres espirituais a exercitarem a misericórdia conjugando-a com a gradualidade da pedagogia de Deus”. No caminho percorrido pelo discernimento, a participação dos recasados pode tornar-se plena. E à pergunta se esta “participação plena” inclui o acesso aos sacramentos, Vincenzo Paglia é claro: “Sim, a via sacramental está presente neste itinerário porque a lei suprema da Igreja é conduzir todos à salvação”.
Apesar de tudo, porque Francisco deseja uma Igreja realmente baseada e viva a partir das vidas concretas do Povo de Deus, caberá às comunidades e aos bispos locais discernir e decidir como dar seguimento à Amoris Laetitia. Será muito interessante verificar que tipo de recepção terá esta Exortação pelo mundo fora.