Em maio de 1968, os estudantes revoltosos de Paris pintaram nas paredes dos edifícios uma frase célebre que poderia ter sido escrita agora por André Ventura: “Eu tenho alguma coisa a dizer, mas não sei bem o quê”. De facto, uma pessoa olha para o líder do Chega e percebe que André Ventura — sempre a rebentar de agitação, de indignação e de comoção — sente que tem algo de irreprimível a dizer ao mundo em geral e aos portugueses em particular. Mas, ultimamente, tem tido uma certa dificuldade em decidir o que dizer exatamente quando lhe colocam um microfone à frente (ou quando ele coloca um microfone à frente de si próprio, o que é mais comum).
Depois das legislativas, e depois de ter conseguido um robusto grupo parlamentar com 50 deputados, André Ventura decidiu fazer oposição ao governo usando temas relacionados com dinheiro, como o fim das portagens nas ex-SCUT. Em tese, fazia sentido, tendo em conta que, supostamente, as pessoas votam com o bolso. O problema é que o Chega, tal como todos os partidos populistas radicais, é estatista na economia — o que o coloca irremediavelmente ao lado da esquerda. Isso, e a vertigem conjunta de tentar humilhar o governo, fez com que, uma e outra vez, o Chega se aliasse ao PS no parlamento. Durante uns tempos, André Ventura divertiu-se com isso. Mas, depois, chegaram as eleições europeias. E, nessa fatídica noite, o líder do Chega percebeu que os eleitores do partido talvez não estivessem a achar a mesma graça aos vários momentos em que apareceu ao lado de Pedro Nuno Santos.
Deu-se, então, um acontecimento raro: André Ventura ficou sem saber o que fazer. Não podia continuar ao lado do PS, contra o PSD, porque os eleitores não lhe perdoariam. E também não se podia deslocar para o lado do PSD, contra o PS, porque os laranjinhas dispensam a companhia. Como acontece com todos os enjeitados, André Ventura decidiu fazer da solidão uma virtude. Primeiro, declarou que se colocava voluntariamente à parte de todos os entendimentos. Depois, procurou um assunto que lhe permitisse ser popular e populista ao mesmo tempo. Ao escolher a imigração, não merece um prémio pela originalidade. Basicamente, está a refugiar-se num tema comum a todos os partidos-irmãos do Chega em todo o mundo. Seguramente pensou: se funciona lá fora, por que não há de funcionar aqui?
Chegado a este ponto, André Ventura tem pela frente uma vantagem e uma dificuldade. A vantagem é que, no fundo, as ideias que defendeu esta semana são razoáveis e, por isso, haverá muitos eleitores a concordar com elas. A proposta de um referendo é exótica, mas quotas na imigração? É uma medida que até o Canadá, possivelmente o país mais woke do mundo, adoptou. A título de ilustração: no plano de imigração que está em vigor nos próximos três anos, o Canadá decidiu que, em 2024, receberá 281.135 imigrantes que entrem no país por razões económicas; 114 mil por razões familiares; 76.115 refugiados; e 13.750 que procurem o país por razões humanitárias. Para perceber as necessidades da economia e chegar a estes números, o governo canadiano falou com empresas e organizações variadas. Parece sensato e, realmente, é sensato.
Já a dificuldade que André Ventura enfrenta com o tema da imigração é política. Colocando as coisas de forma crua: será que o assunto dá votos? Portugal não é Espanha, onde o jornal El Mundo fez esta sexta-feira uma manchete com a frase “A maior crise migratória pulveriza recordes nas Canárias”. Não há barcos de migrantes a chegarem todos os dias às praias de Monte Gordo ou da Comporta. Por isso, André Ventura sente que tem de persistir e esperar que algo mude. Basta, por exemplo, que exista um crime que envolva um imigrante, seja ele real ou imaginário, como no Reino Unido ou em Espanha, para alguns eleitores passarem a ver Ventura como um profeta e um protetor.
Até esse dia chegar (se é que esse dia vai chegar), André Ventura está paralisado. Acontece que, em política, os impasses são sempre perigosos, mais ainda para um partido que vive do movimento e da instabilidade. Há muito tempo, alguém se referiu a um político português que tinha perdido a popularidade dizendo que, tal como aquelas pessoas que têm um grande futuro atrás delas, “em vez de crescer, engordou”. São coisas que acontecem.