O país prepara-se para as comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos. É bom dizer que o país, neste caso, somos todos, mas alguns veem o 25 de Abril de 1974 como uma esperança que não chegou a florir, plenamente, nas suas vidas. Como todas as revoluções, a nossa cometeu erros, teve excessos e ficou aquém de muitas expectativas. Foi feita por homens, eles próprios imperfeitos. Em 1974, eu era um jovem adolescente e não percebia nada de política; levantava-me de manhã para ir à escola, brincava na rua, o ponto de encontro da rapaziada, onde gastávamos a energia atrás da bola.

No dia 25 de Abril, uma quinta-feira, a minha rotina repetiu-se, como todos os outros dias da semana. Quando cheguei à escola, o professor disse-nos que não havia aulas e fomos jogar à bola para o jardim. Tinham passado pouco mais de dez minutos, uma carocha da polícia parou, um agente apanhou a bola e diz-nos que o nosso lugar é na escola. Ficámos a olhar uns para os outros e, o mais importante, ficámos sem bola.

Este episódio foi, provavelmente, a minha primeira lição de ciência política. Por que não podíamos jogar futebol no jardim? Por que não nos devolveram a bola? A resposta a estas perguntas levaram-me a interpelar o professor. As verdadeiras respostas chegaram nos dias seguintes com militares na rua, manifestações e um novo léxico onde as palavras liberdade, democracia e justiça formavam os vértices do triângulo que, imediatamente, se transformou noutros polígonos. A linguagem desnudou-se, havia uma inefável curiosidade sobre tudo, e isso permitiu que surgissem usurpadores de toda a espécie.

Os “quadros” – como eram chamados os jovens politizados da capital – desceram à província, traziam os livros de ideólogos sublinhados com notas de rodapé, cadernos políticos para politizarem as massas e alfabetizarem o povo. As siglas dos partidos confundiam-se, havia “P”, “D”, “S” um pouco por todo o lado. As paredes transformaram-se em telas gigantes, com pinturas motivadoras contra o fascismo e outros inimigos. Havia o clamor dos extremismos à esquerda que ocupava casas e defendia a Reforma Agrária. Estava no Alentejo profundo, onde, num ápice, a palavra “greve” tomou conta da minha vida de adolescente. Raramente havia aulas e sucediam-se as assembleias gerais, reuniões onde todos (professores, estudantes e funcionários) podiam falar para reivindicar os seus direitos. Era quase obrigatório dizer alguma coisa, uma espécie de apresentação que servia, também, para saberem se éramos de esquerda ou de direita. Depois chegavam as votações, um corredor dividia quem estava a favor de alguma coisa, dos que estavam contra – não havia abstenções. Normalmente a maioria assobiava os outros.

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Foi numa dessas assembleias que ouvi, pela primeira vez, um professor de latim falar de demagogia. Esta palavra foi uma espécie de incubadora onde cresceu a minha tolerância mas, também, a suspeita de que ninguém tem a verdade absoluta. Hoje, demagogia e populismo são dois lados da mesma moeda, amparam-se na mentira e alimentam o ódio.

O 25 de Abril permitiu-me atravessar os rios Sado, Tejo, Mondego e chegar à Universidade – “O que eu andei para aqui chegar”, como cantava José Mário Branco. Sem esse dia maravilhoso de Abril, provavelmente, eu não estaria a escrever estas linhas e teria ido combater numa das frentes de guerra em África. Devo a esse “dia inicial inteiro e limpo” (Sophia M. B. Andresen) uma nova possibilidade de cartografar o meu destino. A liberdade mudou-nos a vida, trouxe uma Constituição que consagrou os direitos, nomeadamente, o acesso ao ensino: “Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.” Art.º 74, 1º. A democratização do ensino foi uma das maiores conquistas, aquela que permitiu formação e cultura, a transmissão às gerações vindouras dessa inquietação que alimenta a esperança e ajuda a mudar a sociedade. Os nossos filhos nasceram neste caldo natural onde parece não haver limites para a felicidade, onde a principal barreira é a capacidade de cada um.

Comemorar os 50 anos da Revolução dos Cravos é uma oportunidade para nos reconciliarmos com o passado, esse tempo inóspito de lutos e lutas. Fazê-lo é pertencer ao seu tempo, onde a circunstância se insinua a um futuro que nunca existiu. Para compreender isso, talvez, a leitura de Angústia Para o Jantar (1961), de Luís Sttau Monteiro, resgate os filamentos dramáticos: “Perdi a batalha porque estou fora do meu tempo, não são as armas que dão as vitórias aos vencedores. Quem vence as batalhas é quem está dentro do seu tempo”.