Pouco a pouco, o primeiro-ministro António Costa tem desvendado alguns capítulos do “livro” que ele vem “escrevendo” como se fosse a governação do país. A última revelação surgiu na tomada de posse do novo governo: “Virámos a página da austeridade! Estamos a virar a página da pandemia! Vamos virar a página da guerra”. Não duvidando minimamente da sua veia de contador de histórias, nem da sua capacidade para enlear os nossos sentidos numa narrativa de encantar, o seu livro dificilmente se tornará um best seller: os portugueses e os livros não se têm dado particularmente bem. Mas foquemo-nos no seu afã de virador de páginas.

Quando António Costa diz que virámos a página da austeridade refere-se a quê, concretamente? A austeridade teve lugar durante os últimos suspiros do Governo de José Sócrates e todo o mandato do Governo de Passos Coelho – que executou os memorandos já previamente acordados com a troika –, após um dantesco aumento da dívida pública levado a cabo pelos governos de José Sócrates, que conduziu o país à bancarrota.

O resgate da troika terminou durante o mandato de Passos Coelho, em maio de 2014, sendo que António Costa, eleito já na segunda metade de 2015, beneficiou do segundo ano de crescimento económico após a crise e o início de uma das conjunturas económicas mundiais mais favoráveis das últimas décadas. A política de juros baixos do BCE (desde 2015 que Portugal se consegue financiar a juros negativos) possibilitou que António Costa distribuísse as folgas orçamentais com pequenos aumentos de pensões, contratações na função pública, sucessivos aumentos administrativos do salário mínimo e apoios para tudo e mais alguma coisa. Isto foi conseguido à custa de investimento público e mantendo o segundo maior esforço fiscal da União Europeia, relegando as reformas económicas e fiscais que permitiriam a Portugal dar um salto competitivo. De facto, é impossível confundir a falta de arrojo e ímpeto reformista do Governo de António Costa com austeridade, mas esta página foi virada, bem ou mal, por Passos Coelho.

Vejamos então o que foi a resposta à pandemia do Governo de António Costa. As economia da Zona Euro e União Europeia beneficiaram de uma inundação de liquidez com o programa extraordinário de compra de ativos do BCE e a distribuição de milhões a fundo perdido pelos Estados-Membros da EU, dos quais 13,9 mil milhões se destinam a Portugal. Ainda assim, Portugal teve a quarta maior queda do PIB na UE em 2020 (-8,4%, enquanto que a média da UE foi de -5,9%), e cresceu 0,4 pontos percentuais abaixo da média europeia em 2021, o que valeu ser ultrapassado pela Hungria e Polónia em termos de PIB per capita em paridade de poder de compra. Por outro lado, no plano sanitário, Portugal registou um excesso de mortalidade face ao período pré-pandémico superior à média europeia, que talvez seja explicado por ter sido o segundo país com mais atos médicos prejudicados (34%) a seguir à Hungria (36%), demonstrando a falta de capacidade de resposta às patologias não-covid que apoquentaram a população.

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Portanto, se a eclosão de uma pandemia é alheia à vontade de António Costa, afigura-se, por outro lado, difícil de conceber algum significado ao seu “virar de página” que seja algo mais do que a inevitável passagem do tempo, tendo o dinheiro europeu e a compra de dívida portuguesa, pelas mãos das senhoras Úrsula von der Leyen e Christina Lagarde, evitado males maiores.

Agora, deparamo-nos com uma guerra em solo europeu e a ameaça da inflação que teimam em marcar mais um capítulo no livro da governação de António Costa. Perante este cenário, o primeiro-ministro já anunciou que a inflação é de “natureza conjuntural” (talvez para não ter que baixar impostos, como outros países europeus, e aumentar salários da função pública condizentemente), ao mesmo tempo que anunciou um pacote de medidas francamente parcas para atenuar o seu efeito no bolso dos portugueses. Por outro lado, ganha força no BCE uma subida das taxas de juro já no terceiro trimestre deste ano (contrariando a tese de António Costa), o que trará um aumento dos custos de financiamento das empresas e das famílias cujos níveis de endividamento continuam a bater recordes. António Costa não está preocupado, porque, se correr mal, a culpa é da Rússia, e os portugueses que se amanhem. E vai correr mal.

Atentemos, por isso, na veia político-literária de António Costa, que publicita enfaticamente o produto do seu labor – “virar de página” atrás de “virar de página” – com a enorme satisfação da obra consumada. Porém, o olhar mais curioso do cidadão-leitor esbarra, perplexo, com páginas em branco ou méritos alheios. E no novo capítulo da narrativa encantantória de António Costa, este aparece como personagem secundário e o guião já está bem desenhado: tal como nas legislaturas anteriores, o seu Governo abraçará a hercúlea missão de conduzir os destinos dos portugueses perante mais uma conjuntura externa difícil. O que não nos conta é que, de página em página, caminhamos a passos largos para a cauda da Europa.