Diz-me como falas, ou como escreves, e dir-te-ei quem és! Esta afirmação categórica, esta asserção, parece, contudo, estar a perder, hoje em dia, alguma da sua capacidade de “determinar” a origem social, ou a classe social de pertença, dos falantes ou dos escreventes. Existem certos modismos que, pelo seu uso alargado parecem estar a desacreditar a afirmação inicial, desmentindo o poder preditivo do modo como se utiliza a língua. Tal é nomeadamente o caso da expressão aquilo que é, foi, ou foram (o tempo verbal pode variar, mas a base, o alicerce, mantém-se inalterável).
O uso ou, mais precisamente, o abuso da utilização do aquilo que é, embora alargado, mantém-se, todavia, delimitado e circunscrito a certos meios sociais, assumindo características endémicas. Os estratos sociais que se situam nos extremos da pirâmide social parecem estar, por ora, imunes a esta “praga”, que parece alastrar, sobretudo junto de certas camadas da pequena e média burguesia. Os mais frequentes e fiéis utilizadores destes expletivos situam-se principalmente nos meios da política – governantes, deputados, autarcas – e da comunicação social, ecoando aqui em todas as áreas, desde os comentadores políticos até ao desporto e ao entretenimento. Nos mass media, sobretudo nos audiovisuais, assistimos a uma espécie de exibição de um coro que, em uníssono, nos “brinda” diariamente com uma forma de expressão, um linguarejar típico, onde abundam os pleonasmos viciosos, que pretende apresentar-se como marca distintiva. A distinção, parece, contudo, não seguir aqui totalmente o percurso tão bem analisado por Bourdieu: o seu efeito mimético é restrito, funcionando em circuito fechado, repetindo-se no meio como uma espécie de rito que identifica a pertença ao grupo. Esta utilização desnecessária de palavras, em que não se vislumbra nenhum objectivo, ecoa desagradavelmente fora do grupo dos praticantes, soando como um ruído irritante e perturbador que demora a desvanecer-se.
No âmbito do pessoal político, e nomeadamente entre os governantes, embora quase todos, a começar pelo Primeiro-Ministro, não abdiquem da utilização frequente das expressões aquilo que… naquilo que, quem assume a primazia relativamente ao seu uso abusivo é, provavelmente, a ministra da Saúde. Sempre que surge nos ecrãs da televisão, o que há cerca de um ano, devido à pandemia, acontece com muita frequência, o emprego excessivo daquelas partículas de realce, pretendendo dar força às frases, produz, ao invés, o efeito de tornar as intervenções enfadonhas, confusas e pouco esclarecedoras. O conteúdo da mensagem esvanece-se, esmagado pela “sobrecarga” da forma, qual ladainha entediante, cujo eco atordoa e afugenta a audiência.
Na conferência de imprensa realizada em 15 de fevereiro de 2021, que se iniciou às 14:30 horas e terminou às 15:05 horas, em que também participou um representante da entidade responsável pelo simulador online de vacinação, foi particularmente notória a excessiva – e desnecessária – utilização das expressões acima referidas. Da intervenção inicial da ministra, que durou cerca de cinco minutos, respiguei as seguintes passagens:
“…Houve impacto daquilo que foi a pandemia…”;
“…A apoiar aquilo que são as respostas…”;
“…Com aquilo que será o expectável desenvolvimento…”;
“…Relativamente àquilo que é o plano contratado…”
“…Um distanciamento entre aquilo que é…”;
“…Uma aproximação àquilo que é o plano contratado…”;
“…Relativamente àquilo que é o plano para a semana de trabalho…”.
Depois, no período de intervenção da comunicação social, e em resposta às questões colocadas pelos jornalistas, assinalei mais as seguintes passagens:
“…Em termos daquilo que é a procura de testes…”;
“…Por aquilo que é uma utilização de testes…”;
“…Espera por aquilo que é um trabalho de execução…”;
“…Aquilo que foi solicitado aos especialistas…”;
“…Reunirá aquilo que será a participação de todos…”
“…Regressar àquilo que é a afectação de camas…”;
“—Aquilo que eram os números sobre a entrega de vacinas…”
“…Processo com aproximações àquilo que é a fase…”;
“…Não vamos cumprir aquilo que tínhamos como meta…”;
“…Reservar aquilo que é a actividade dos cuidados de saúde…”;
“…Neste momento aquilo que estamos a fazer…”;
“…Que começam com trabalhar de acordo com aquilo que são os riscos…”;
“…Um indicador daquilo que é a situação das pessoas…”.
Façamos, então, o balanço final: a conferência de imprensa durou 35 minutos; se descontarmos o tempo correspondente à intervenção dos jornalistas e à informação sobre o simulador online de vacinação, a senhora Ministra terá utilizado cerca de 20 minutos. Como registámos 21 vezes o uso da partícula aquilo que, verifica-se a frequência média de uma vez por minuto!
Não está, por ora, em causa a competência técnica da senhora Ministra: nesta situação caracterizada pela imprevisibilidade e pela incerteza, induzida pela multiplicidade de variáveis em jogo, talvez não seja possível fazer muito melhor. Quando a pandemia estiver melhor controlada e se regresse gradualmente à vida normal, será então possível avaliar, com mais objectividade e distanciamento, o desempenho do Governo nesta crise, em geral, e da ministra, em particular.
Nas sociedades contemporâneas em que impera a mediacracia, o manejo fácil da palavra, o domínio da arte da retórica, torna-se essencial para os governantes, qualquer que seja o grau da escala hierárquica em que se situem. Afigura-se-nos que, neste âmbito, a ministra revela imensas fragilidades, estando longe de preencher cabalmente o seu papel de informação e de esclarecimento da opinião pública. Se, como tudo indica, a Directora-Geral da Saúde terá sido “silenciada” devido à falta de aptidão revelada no domínio da comunicação, a assunção total desse papel por parte da senhora Ministra não parece ter contribuído para melhorar substancialmente a situação.
Para terminar, gostaria de referir, em abono da senhora Ministra, que, ao contrário do que se verifica com vários dos seus colegas do meio da política e também na área da comunicação social, não “acumula” o uso abusivo e contraproducente das expressões de realce, com “mimos” de linguagem como ter a haver, até logo mais, pôr o ênfase, os acórdos, o covid, vai de encontro… Nos tempos que correm, esta “não contaminação” merece ser elogiada!