Não direi nada de novo se afirmar que a generalidade dos católicos ignora e despreza a Moral católica. Os motivos para isso são diversos, mas todos eles radicam nessa própria Moral de arquivo que, por exemplo, querendo ser uma antropologia primeira, esquece-se que o ser humano é um ser espiritual em relação dialogal com Deus desde a conceção, e só começa a ser um ser moral quando assume as normas da consumação do processo de hominização – patenteadas, no caso judaico-cristão, nos ‘Dez Ensinamentos’ (e não ‘Mandamentos’).

Ocorre que essa Moral tem desejado fazer-se amiga de quem mais critica o Cristianismo, assumindo, muitas vezes e no seu discurso, o pensamento vaporoso, relativista e até amoral desses críticos. Críticos que levaram ao surgir de uma enorme confusão no Ocidente, da qual só é possível sair-se, não pelos insultos, indignos de qualquer pessoa (mais ainda cristã) – como os ditos pelo monsenhor Tomáš Halík acerca do democraticamente eleito presidente dos EUA –, mas pelo levar uma proposta Moral assente na vida espiritual até esses críticos.

Uma vida espiritual (mística?) traduzida nas ‘Grande Alegrias’ (expressão que penetra melhor no pensar contemporâneo do que o nome ‘Bem-Aventuranças’) e que são o estranho caminho da humanização. Estranho, sim, pois traduzindo as três tentações de Jesus no Deserto (que culminarão, tal como com as suas traduções, na Cruz), são a transparência de um Amor que é exigente, pois é a fonte da verdade acerca do real humano patente em tais ‘Grande Alegrias’.

Não se pense que os ‘Ensinamentos’ são de desprezar como afirmam alguns moralistas coevos. De modo algum. Eles já estão redigidos no ‘condicional do amor’ (e não no imperativo). Ora vejamos alguns: «(se amas) não matarás»; «(se amas) não mentirás»; «(se amas) não cobiçarás o que não te pertence». Ou seja: os ‘Ensinamentos’ convencem-nos de que a nossa humanidade ainda está à frente de nós, pois é por uma lei exterior que nos movem.

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Mas não se pode ficar por aqui, por mais que muitos dos novos sacerdotes não conheçam tais ‘Dez Ensinamentos’ – sei do que falo e falo do que examinei. Isso seria tão fatal como ensinar elasticamente a Moral cristã segundo o dito por Marx, Nietzsche, Freud, Gramsci, Foucauld, Drewermann, Butler, Kaufmann ou Curran. Que se os leia, nada a opor; que deles se importe ideias para a Moral católica, não me parece o ideal, nem sequer o aceitável (exceto se a quisermos mentirosa e não um tu-a-tu com a inocência amorosa e silenciosa de Deus).

Há que ousar deixar que Deus risque nos nossos corações uma Moral que não negue a verdade pessoal do ser humano como ser de comunhão e de amor. Uma Moral que, entroncando nas ‘Grande Alegrias’, configurará o éthos cristão humanizador a brotar de um modo de existência comunitário e à imagem do abismo de Amor da Vida trinitária.

Eis, assim, uma Moral que se reconhece e aceita como pulchra humilisque ancilla da Espiritualidade, e que anunciará a Alegria da Esperança, mostrando que o que Deus quer do ser humano não são as realizações morais nem os méritos individuais, mas um sussurro convincente de confiança e de amor que vem do fundo do nosso mais íntimo abismo pessoal.

Mas como realizar isto se, desejando-se fazer magia e transformar a Moral num avatar da frigidez, ainda se tenta fazer uma ‘açorda’ moral de tomismo (não de Tomás de Aquino, note-se) e do antropocentrismo secularista contemporâneo?

Quanto a este último, a verdade é que se trata de um ateísmo disfarçado, embora seja preciso reconhecer que os ateísmos contemporâneos são caricaturas das ‘Grande Alegrias’ (senão mesmo ‘anti-Grande Alegrias’). Apesar da sua pobreza intelectual, estas ideologias são movidas por uma busca impotente de felicidade, uma sede seca de redescobrir uma dimensão de libertação do homem.

Que lágrimas e maldades que disso dimanam. Contrariamente ao mantra, dos já velhos e fracassados ‘New Atheists’, é a ausência de Deus que mais tem matado – e em números obscenos. Mas o ateísmo não mata apenas vidas. Mata igualmente: o sentido do passado e do futuro; o livre-arbítrio que possibilita a liberdade; a beleza de cria a vibrar nas suas harpas; a compaixão e o perdão; os propósitos bondosos; a criatividade e o amor; etc. O ateísmo oferece apenas caos e totalitarismo. Ele nunca criou o que quer que seja, pois é insensível ao fogo interior, ao fogo do Espírito, ao fogo do amor.

Já quanto à porção tomista na dita ‘açorda’ verdadeiramente intragável, a mesma gerou, em mentes fragmentadas e noutras por estas afetadas, uma cisão catastrófica daquilo que nunca deveria ter sido dividido. Explico-me: só existe o amor do Deus-Amor a nos ser dado. Um amor que é simultaneamente: aquilo que nos é dado gratuitamente; o deleite recebido no dom; e a ação de graças oferecida por ele. Assim, todas aquelas coisas que a teologia Moral distorcida comuta em oposições ou opostos dialéticos – graça e natureza, criação e deificação, natural e sobrenatural – são apenas intensidades ou variáveis dentro de um único ato.

Vivemos tempos interessantes. Não separemos as ‘Grande Alegrias’ das sobreditas Tentações no Deserto – cada uma com uma opção messiânica (logo cristã) de Jesus.  Assim, as ‘Grande Alegrias’ serão sete grandes vias que nos conduzirão progressivamente ao mistério de Jesus, exigindo que captemos toda a nossa vida e todo o nosso ser numa cooperação com Deus que nos possibilita acolher, com os lógoi deste Cosmos, o apelo à théosis (a ‘deificação’ ou ‘divinização’ – que é sempre uma ‘amorização’ –). Deparamo-nos aqui com um progresso eterno na vida amorosa, através do qual se realiza no sujeito uma transformação perpétua, de glória em glória, até à semelhança plena com o Deus-Amor.

Assim sendo, estejamos certos que Deus não vai intervir na nossa vida para marcar os limites da Sua ‘propriedade’ e da nossa, pois Ele nada tem, não sendo um nosso adversário, mas um potenciador das nossas capacidades. Deus-Amor é o amor-generoso que só nos pode tocar para nos libertar do nosso ‘ego’. Eis a Moral de que necessitamos: uma que nos leve a ir «instruir (matheteúsate) todas as nações (…), ensinando (didáskontes) a viver tudo o que vos entreguei (eneteilámen)» (Mt.28,19s). Kerygma, sempre; mas igualmente explicitação deste.

Resultante da Espiritualidade, esta Moral pode chegar a ser uma Mística que dá-nos os modos para nos mudarmos continuamente com a firmeza da antedita doutrina. Esta Moral toca-nos com a misteriosa angústia do Deus que é colocado nas nossas mãos e a ‘opção fundamental’ passa por resistirmos, ou não, ao apelo desarmado do Abismo do Deus que conta que o protejamos do que de menos verdadeiro há em nós.

Isto não será tragável para todos, mas ser-lhes-á um antibiótico e um biótico indispensável, pois é algo infinitamente mais profundo, infinitamente mais maravilhoso, infinitamente mais exigente – mas de uma exigência que é a própria maturidade da nossa liberdade eclesial e crística. Seguindo esta pauta, olharíamos de outro modo para a nossa natureza auto-enganadora, podendo levar-nos a dar nova prioridade a consciências libertas enquanto corretamente formadas à luz da Escritura, da Tradição e do Magistério enquanto Magistério.

A partir daqui poderá haver contribuições novas e estimulantes para os debates (bio)éticos em curso nos nossos dias, por exemplo, sobre se algo como a razão pública pode ser uma base coerente para uma Moral rica em sentido e dadora de sentido para a pessoa e a sociedade.

Aqui , e para terminar, há que regressar a Tomáš Halík. Não só para referir o facto de que aquilo que ele chama de ‘pós-modernidade’ ser, na verdade, uma ‘nova modernidade’; nem sequer o quão problemático é o seu apego a Carl Jung; nem a sua inclinação para reciclar o pensamento de outras pessoas; nem, sobretudo, o criticar, sem poupar de adjetivos viperinos, algumas autoridades eclesiásticas enquanto procura promover, totalitariamente (resquícios do que viveu?), a agenda de outras autoridades eclesiásticas.

Face ao último ponto elencado no parágrafo precedente, pergunto: não seria, monsenhor Halík, de fundar a sua ‘espiritualidade kairológica’ (que até ajudaria a riscar aquela Moral personalizante e cristificante com que tantos sonhamos) menos num atacar aqueles que são batizados como o senhor (embora sendo eles, evocando eu os grandes GNR, menos popless), e antes num fazer um juízo mais arguto acerca dos fatores externos. Não seja, estimado monsenhor, a ‘tarde’ nem a ‘noite’ (nem sequer o ‘vazio’) de que tantas vezes fala