Pessoas que estimo, e outras nem tanto, têm vindo a abundar em análises à entrevista que Marcelo deu a uma admiradora enquanto conduzia o seu carro particular de Belém até Viseu – quatro horas, tudo filmado retumbantemente pela CNN, que fez um resumo de cerca de uma hora.

Da entrevista ouvi nada e dos comentários cinco minutos – logo percebi que os comentadores se sentiam na obrigação de “analisar” o não-assunto porque ninguém levaria a bem que dissessem, como eu disse no Facebook «Não vi a entrevista porque não gosto de arraiais, nem de música pop, nem de poetastros, nem de intelectuais de pacotilha, nem de académicos ocos, nem de maquiavéis parolos, nem de entertainers sem graça. E é claro que o homem não disse, porque não se dá o que não se tem, nada de memorável. Razões pelas quais as análises que andam por aí são exercícios imaginativos sobre coisa nenhuma. Agora, esta mulher diz que o homem é um “conversador”. Estás por fora, Anabela: ele é um monologador. E como tem péssimo discernimento aprecia o que diz.»

Entretanto, a estação é silly, as redes estão mortiças, não tenho que fazer e uma dúvida me sobrou: que raio anda o Presidente da República a fazer na estrada, conduzindo o seu automóvel particular (um topo-de-gama, é como a deslumbrada Anabela descreve o charêlo) em destino a uma feira onde o esperavam dúzias de selfies com populares e muitos microfones para registar as banalidades de que invariavelmente se alivia?

É que, se a deslocação era oficial, e não sendo o preclaro um fanático do desporto automóvel, nem sequer um condutor de créditos firmados, não se percebe por que razão não utilizou um automóvel oficial. Ou melhor, não percebia: que logo no princípio da entrevista o próprio esclarece que se estivesse dois mandatos sem conduzir a seguir não atinava. Realmente as coisas tendem a esquecer a quem não sabe, enfim.

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Já que estava com a mão na massa poderia ver o resto. Mas não vi razões para não confiar na imprensa que, por exemplo, resume o Observador:

«Marcelo Rebelo de Sousa tem os seus “fetiches”, e um deles é uma canção em particular: “Dream a Little Dream of Me”, de Doris Day, [que] é a música favorita do chefe de Estado e presença obrigatória na rádio nas longas viagens na estrada […] prefere as sonoridades do jazz, dos anos 80 e 90. E garantiu que cumpre sempre as regras da estrada e nunca pisa o risco na velocidade. É que “Presidente a conduzir acima do limite é feito em fanicos”. E esse é, de resto, um conselho que deixa ao sucessor: “Um Presidente fica marcado para o resto da vida”».

(Um conselho ao sucessor, da minha lavra: Convém, em qualquer assunto de relevo, fazer o que Marcelo nunca fez; e em qualquer assunto menor o contrário do que recomenda, se por infeliz acaso alguém se lembrar de alguma coisa das muitas que expectorou).

«De resto, admite que o aconselham a desacelerar, agora não tanto no asfalto mas na intensidade da agenda. “Como é que não havia de estar mais magro?“, admite Marcelo, que em poucos dias somou compromissos como uma ida a Marvão a guiar, um encontro com escuteiros e uma passagem pela Feira de São Mateus.»

(Pessoalmente, sugeriria que o senhor Presidente se deslocasse de bicicleta a pedal: não chegaria a tempo ao encontro dos escuteiros, para alívio destes, nem à feira de São Mateus, cujo merecido sucesso não ficaria diminuído, mas é fortemente provável que viesse a adquirir um sólido apetite, para além de dar um significativo exemplo de amor ao exercício físico e à sustentabilidade do planeta).

«Sobre o futuro, quer ser recordado não como chefe de Estado, mas como professor. Pensa mesmo voltar à escola, mas não no ensino superior: quer dar aulas a crianças.»

(Lá experiência não se pode dizer que não tenha, é o que tem feito desde o princípio do seu exaltante múnus. Têm a palavra os pedopsiquiatras para aquilatar dos benefícios que podem advir para os infantes da exposição a doses cavalares de lero-lero).

«Marcelo Rebelo de Sousa partilha ainda [que] tem um plano traçado para quando sair de Belém: assinalar a data com “uma almoçarada”. O menu? Pode ser um bife com ovo a cavalo, batata frita e arroz, empurrado com cerveja — nada de marisco vermelho (que seria uma boa alternativa) porque é alérgico.  Dedicar tempo à consciencialização sobre os cuidados paliativos e aos cuidadores informais; passar tempo com os netos e a viajar para sítios como São Petersburgo e a Amazónia, destinos que ainda não visitou, são outros planos a longo prazo.»

(Viajar para longe muito bem, passar tempo com os netos ainda melhor, agora resta uma incógnita: se como Presidente não há rasto de resultado sério, a si devido, na melhoria dos cuidados paliativos nem do estatuto dos cuidadores informais, por que razão como privatus obterá melhores resultados?).

«Marcelo Rebelo de Sousa sabe que, nas funções de Presidente, não teve associada a si a famosa “fotografia de família”. E ainda bem, considerou à CNN Portugal:  Tenho um horror a isso”, admitiu, “não há família que aguente isto, levando ao nível de proximidade que eu levei”. Mesmo assim, “descobri família minha que não conhecia desde que sou Presidente“, confessou.»

(Há, há famílias que aguentam “isto” – as de todos os que o antecederam e, provavelmente, as de todos os que lhe vão suceder).

E então, de política, nada? Sim, o DN relata e ficamos a saber que, segundo o piloto, era plausível a maioria absoluta do PS, acrescentando:

«Dois temas marcaram os debates: SNS e pensões são dois pontos essenciais na sociedade. Um pequeno aumento das pensões significa muito para uma sociedade envelhecida e para as classes mais pobres”, considerando que a “especulação sobre a guerra influenciou as legislativas”, uma vez que o povo prefere a “estabilidade”.»

(Prefere. A estabilidade de um deslizar para os últimos lugares do desenvolvimento, de uma dívida que não cessa de crescer, de uma enraizada dependência dos fundos europeus que se imaginam eternos, da emigração dos jovens já não dos campos para os bairros de lata de Lisboa e Porto e os bidonvilles de Paris, mas para destinos mais variados, com formações sortidas que vão enriquecer outras economias, e um longo etc. de falhanços e insuficiências – tudo assuntos sobre os quais o homem não diz nada porque se acreditarmos que tudo está bem será um sinal seguro de que não está mal).

«”O problema com Bolsonaro foi um não problema”, afirmou, acerca do cancelamento do encontro entre os dois chefes de Estado no início de julho, após Marcelo ter decidido encontrar-se com o ex-presidente e atual candidato Lula da Silva. “As eleições no Brasil são imprevisíveis”.»

(Como o resultado das eleições é imprevisível convém ter as melhores relações com um concorrente potencial ganhador. Porém, ofender no processo outro não parece curial nem é admissível visto que a visita de um chefe de Estado não é, por definição, aos candidatos à presidência mas ao país – que Bolsonaro representa e Lula não).

«Questionado sobre a existência ou não de um racismo estrutural em Portugal o PR admitiu que… “mudar a cultura cívica demora imensas gerações”, mas mostrou-se otimista, considerando que as “crianças e jovens repudiam totalmente o racismo e discriminações doutro género, como as de cariz sexual”.»

(Os eleitores de Marcelo são uma boa cambada de racistas, acha o próprio. Mas as crianças e jovens não, felizmente. Aprenderam nos festivais subsidiados pelas câmaras municipais e na internet – é a tese presidencial, que gente com dois neurónios funcionais, mas não três, decerto aceitará).

«”Temos uma percentagem baixa de deputadas. Como é possível não haver um protagonismo maior das mulheres na sociedade portuguesa?”, pergunta angustiado o Presidente, mas não responde.»

(Eu também não sei, é um grande mistério. Em todo o caso, toda a gente veria com bons olhos a eleição de uma presidente, desde logo porque seríamos com certeza poupados ao espectáculo deplorável, a que Marcelo nos habituou, de mudar de calções em público).

«”É preciso pôr de pé o quadro jurídico para a reforma do SNS” e manifesta a esperança de que “seja encontrada uma solução para o novo aeroporto de Lisboa ainda durante o seu mandato”.»

(Quadros jurídicos é o que tem faltado ao SNS, o que temos tido encontra-se bastante puído e é urgente substituí-lo por um novo em folha. Mas a dizer o quê? Ora, se o quadro ainda não foi elaborado, como haverá de se saber o que diz? Marcelo não é legislador, isso é com o Governo e o Parlamento. Quanto ao aeroporto a Ota, o Montijo, Alcochete, Beja, Portela+1 – isso é o menos, importante é que seja uma coroa de glória num mandato onde elas não faltam).

«”… os sucessivos líderes de direita” cometeram “um erro” ao descolarem-se “ostensivamente” de si e disse que António Costa percebeu que podia beneficiar da proximidade do Presidente da República.»

(Não foram os líderes que descolaram de Marcelo, foi este que descolou daqueles. O erro dos líderes não consistiu em afastarem-se, mas antes em terem-no apoiado nas eleições quando era preciso uma grande dose de cegueira para não perceber que estava ali um catavento capaz de defender tudo e o seu contrário desde que pudesse pairar numa nuvem de popularidade: para haver um Marcelo de direita era preciso que a esmagadora maioria do eleitorado estivesse a pender para esse lado do espectro).

Chega. Há mais, muito mais, na famosa entrevista, mas é a mesma mistura de simplismos, superficialidades e irrelevâncias, o que tudo durará menos do que o interesse nas cuecas invisíveis de Cristina Ferreira.

O assunto não é de somenos: a celebérrima entertainer usou ou não usou cuecas na festa de Verão da TVI? Ela lançou uma colecção de três modelos, dos quais o terceiro não se vê mas lhe ficou muito bem.

É como o pensamento de Marcelo.