“Galinheiro”: podia ser, por definição, o local onde coabitam pessoas que não se calam. Mas não, galinheiros são zonas em locais onde coabitam pessoas que não se calam, e todas as outras, e é esse o problema sobre o qual recai esta dissertação. Pretende, igualmente, adquirir a consciência social de que esta não é uma questão de género: há mulheres que não param de gastar discurso, e homens que as superam.
Se largarmos o cancro do preconceito e, com isso, pusermos de lado as ideias feitas, aquelas às quais nos acomodamos, sobre o que for, sem fazer o exercício do questionamento, conseguimos abrir os olhos e ver à nossa volta, claramente, que há galinhas masculinas e galinhas femininas. Não lhes chamo galos porque os galos só cantam de vez em quando, e com algum propósito, estas galinhas masculinas falam ininterruptamente e sobre nada.
Gallus gallus domesticus existem no escritório, no ginásio, no elevador, no metro, na padaria. Eles não se cansam de impor ideias inócuas, de impor vivências vazias. Alguns trazem, até, gotículas de saliva apensadas, que vêm olear a articulação dos verbos, e chapinar na cara dos interlocutores involuntários. A coisa agrava-se quando os galináceos se lembram de mascar pastilha elástica, sem fechar o orifício bocal, onde se lhes adivinha uma língua ginasticada, e dentes que rasgam e maltratam a nobreza das palavras.
Há galinhas que também abusam no tom de voz, distingue-lhes a espécie. E as que utilizam o volume de médio a alto fazem explodir, sem misericórdia, qualquer armadura de paciência do mais resiliente ouvinte-à-força. Assiste-lhes, outrossim, uma característica bastante perigosa, que se denomina de contágio. Há muitas galinhas em potência que, assim que detetam um espécime mais desavergonhado, que tenha já aberto as hostilidades metendo a primeira no destituído discurso, aninham-se-lhe, apanham-lhe o lanço e começam a competir no que de mais inútil se possa dizer.
Deste zumbido sincopado fazem parte peripécias hercúleas que os galináceos consideram já ter vivido, e cujo reconhecimento continua a faltar-lhes, perpetuamente. Faz parte também o exercício que mais lhes é recorrente, e provavelmente de um gasto cardiovascular hipercalórico, o de apontar o dedo a qualquer mosquinha que se lhes incomode, porque normalmente este bicho é-lhes enorme, por comparação e, na sua sombra, creem queimar todas as calorias em excesso. Normalmente esta espécie de pessoas nunca está bem. Seja física, emocional e psicologicamente, e a solução passará por se camuflarem nos problemas que arranjam aos outros. Outras galinhas há, ainda mais tristes, que falam, falam, falam, para não terem de se escutar a elas próprias. O(s) ouvinte(s), paciente(s), tornam-se campeão(ões) nas provas de resiliência.
Espreitamos a mesa do escritório onde, em open space – nas chamadas ilhas – trabalham sete pessoas juntas. Há duas que põem o volume dos headphones no máximo, e franzem o sobrolho com força, tentando enfiar a cara no ecrã, para que o discurso a jato do galináceo não se lhes afete a produtividade (e a sanidade). Outros três colegas encaram os fala-barato de vez em quando, em réstias de simpatia, na esperança de que, pelo olhar educado de desaprovação, as galinhas percebam e se calem. Só que não; muito em breve estarão, estes colegas que se julgavam suficientemente tolerantes, também eles, a por os headphones. Sobram portanto dois, a galinha-ela-própria e a galinha-atrelado, num jogo de pingue-pongue de baboseiras e piadas sem graça, que formam uma nuvem de stress e de notas musicais destruídas, a pairar em cima da ilha.
No ginásio, vamos a uma aula de indoor cycling. Existem duas professoras com microfone. À vez, puxam pelos alunos, incentivam, e, dada a excessiva frequência com que o fazem, chegam a perturbar e distrair o mais empenhado atleta. Existe uma razão para isso, elas tentam, vigorosamente, sobrepor-se a dois valentes elementos pseudo-desportistas-galináceos que, escorridos de disenteria verbal, sugam qualquer batimento por minuto circundante. Como é possível que nem a pedalar estas galinhas fiquem sem fôlego como as pessoas normais? Não se lhes esgota a energia na cavidade bucal. Elas gritam, elas riem, elas impõem o seu sofrimento físico aos outros elementos da equipa, abafam o ritmo da musica, já por si em volume de elevado a muito elevado, destronando todo o esforço de concentração em cima da bike de toda a gente, menos delas.
No elevador é do pior. Principalmente quando se tratam de elevadores pequenos em que as moléculas de ar são meticulosamente contadas para cada um. As galinhas, descaradas, apoderam-se da reserva privada de O2 das pessoas, em saque aberto, destemido, e em contaminação da esfera privada alheia.
No metro encontram-se galinhas que cantam ópera desafinada ao telefone. Toda a gente fica a saber das suas vidas, feitos e contrafeitos. Ouvem-se homens bem parecidos a pedir às mães que lhes preparem o jantar para quando chegarem (seria tão mais interessante não saber isto), miúdas cujo namorado não respondeu mais e, por isso, estão sôfregas, doentes e vão morrer amanhã, ou mulheres que discutem as escolhas dos vestidos das filhas de determinada figura pública que, no fundo, desprezam, por desejarem tanto as suas vidas. Ruído ensurdecedor.
Na padaria, quando se combina um café com alguém, porque de facto há quem tenha assuntos importantes para resolver mas, acontece a oportunidade one-in-a-million de calhar ao lado da mesa de uma galinha que, como lhe é característico, interrompe o trafego alheio das palavras, perturbando a mensagem que queremos passar ao nosso companheiro interessado, num esforço continuado de agarrar e proteger o que dizemos, mas temos que desistir da ideia e ir dar uma volta lá fora para conseguirmos conversar.
Esta silenciosa crónica pretende genuinamente beliscar o botão do volume desta nossa espécie galinácea, para um grau mais baixinho, aquele do respeito. Pretende mostrar que o silêncio existe, e que é cultivado por muitos, propositadamente. Pretende também criar alguma solidariedade junto de quem tem que aturar as galinhas diariamente. Quer evidenciar-se na consciencialização de que as galinhas não dependem do género, livrando as mulheres desse errado estigma (mais um) de que falam muito e que é tudo que sabem e gostam de fazer.