No mês passado, assistiu-se a um súbito interesse pelas condições em que viviam duas gémeas na Amadora. Viviam em condições deploráveis e nunca tinham frequentado a escola. Já contam com 10 anos e nunca tinham tido tanta atenção de tanta gente ao mesmo tempo. Muitos se mostraram indignados, muitos perguntaram porque só agora, com 10 anos, foram retiradas da miséria e de uma família que não punha o seu bem-estar e futuro à frente de tudo o resto.
Todos sabemos o que os estudos dizem, se nasces “pobre” dificilmente deixarás de ser “pobre”. Uma criança que nasce no seio de uma família desfavorecida não tem as mesmas oportunidades que as que nascem em famílias ditas normais. Este caso é um extremo. Os progenitores levaram ao extremo as suas convicções de que o que estas crianças não necessitavam de mais do que aquilo que eles tinham tido. Não é impossível recuperar o tempo perdido, mas o sistema não está preparado para acudir a estes casos.
Estas crianças não são caso único, há muitas mais. Não se sabe ao certo quantas, porque isso também não interessa para as estatísticas. Não é invulgar aparecerem nas escolas primeiras matrículas de crianças com 7 ou 8 anos, é claro que não se publicita tal coisa, mas acontece. O sistema não tem meios de fazer cumprir a lei. A obrigatoriedade de frequência escolar desde os 6 anos pode não ser cumprida, sem dificuldades. Infelizmente, em Portugal, as entidades que deviam acompanhar estas situações estão desprovidas de recursos humanos e outros para tal tarefa, resta-lhes atuar quando o mal está feito.
Ainda não conseguimos proteger todas as crianças que residem no nosso país. Os casos que de vez em quando vêm à luz do dia são uma ínfima parte de todos os que entram nos gabinetes da CPCJ e tribunais. A nossa justiça é lenta, o sistema é burocrático e perde-se muito tempo entre o conhecimento à ação. E até a falta de proteção das profissionais que se esforçam para dar um futuro a estas crianças, já que os progenitores não o fazem, pode influenciar a rapidez ou desfecho de alguns casos.
A escola tem um papel relevante na identificação, denuncia e desfecho destes casos, mas qualquer um tem. A escola, tal como as restantes instituições, está presa a processos burocráticos que o sistema não agiliza, deixando estas crianças entregues a si mesmas. Sendo suposto que a escola seja a segunda casa de todas as crianças, para estas é a primeira. É nela que encontram a estabilidade, o interesse, o carinho e o aconchego para o resto do dia. Mas, enquanto o “sistema” se recusar a olhar para estas crianças e não mostrar mão dura para quem as descura, não haverá escola ou outra instituição que as consiga proteger. Para que isso aconteça, é necessária uma mudança de paradigma: o bem-estar, os direitos das crianças e os deveres dos progenitores/encarregados de educação devem ser postos acima dos direitos dos prevaricadores, sejam eles quem forem.
O Estado deve tomar o lugar que lhe compete, o de protetor de todas as crianças, e não de continuar a abrir os olhos quando o mal está feito e, acredite-se ou não, dificilmente se vai desfazer. Os recursos humanos e financeiros têm de ser disponibilizados. A proteção de quem se envolve nestes casos deve ser assegurada, a mão da justiça tem de ser dura e em vez de andarem por aí a dar entrevistas e a fazer papel de coitadinhos, tem de ser responsabilizados, rápida e eficazmente.
Acabem com as hipocrisias e protejam as gerações do futuro de práticas do antigamente. A escola vai continuar a fazer o seu papel de protetora destas crianças, mas não o pode fazer sozinha.
Professor e blogger colaborador no Blog DeAr Lindo
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.