Única equipa a impedir golos do Porto campeão. Eis o único mérito do Aves na 1.ª Divisão 2019/20. Falamos daquele 0-0 de há um mês, com Zé Luís a falhar um penálti ainda na primeira parte (defesa de Szymonek) e a alimentar o debate do primeiro lugar. Tanto antes como depois desse nulo, o Aves é uma nulidade em si. Vá, escapa-se o iraniano Mohammadi, uma agradável surpresa em todos os sentidos (oito golos é obra). Repetimo-nos, o Aves é uma nulidade. A arrepiante falta de ideias aliado ao jogo negativo é uma soma de factores penalizadores, razão pela qual o Aves ocupa o último lugar desde sempre. Quase sempre, vá – desde a 6.ª jornada. Agora a ideia peregrina de falhar o último jogo, em Portimão, é de bradar aos céus.
É o Campeonato no seu pior, é tudo no seu pior. E o tudo apanha todos por tabela: instituições, SAD’s, administradores. Só palavrões. Incrível como o futebol português rasteja sem dó nem piedade. É inconcebível, vergonhoso, inaceitável. E o pior, é minimal repetitivo. Há anos e anos, andamos acima, a assobiar para o lado. Mais de um século, acredite. Julho de 1919, dia 14. Sporting e Benfica terminam o campeonato regional de Lisboa com o mesmo número de pontos e é necessário um play-off a duas mãos para desempatar.
Para tão importante compromisso, o Sporting apresenta-se com Quintela; Jorge Vieira e Amadeu; Caetano, Perdigão e Stromp; Jaime Gonçalves, Torres Pereira, José Rodrigues e Marcelino. Não, não está enganado, só estão dez jogadores em campo. O 11.º não vai a jogo, tal como o árbitro Luís Plácido de Sousa, substituído por Carlos Pinto, que expulsa o benfiquista Cândido de Oliveira e valida o golo de Perdigão. A primeira mão acaba com 1-0 para o Sporting e assiste-se pela primeira vez à ausência de um futebolista num jogo.
Situemo-nos mais uma vez: estamos em 1919, o futebol está longe de ser profissional (o 11.º jogador não vai ao estádio porque tem outros compromissos, esses inadiáveis) e mais se parece com a república das bananas. Noventa e dois anos depois (sim, 92), estamos em 2012, Marte está ali à mão de semear, o futebol já é profissional e estamos metidos num inesperado molho de brócolos.
O declínio começa na sexta-feira. Com quatro meses de salários em atraso, 16 jogadores do plantel profissional da União de Leiria rescindem colectivamente os contratos que os ligam à SAD e avançam para uma greve aos três últimos jogos do campeonato (Feirense, Benfica e Nacional). Em caso de falta de comparência numa das três últimas jornadas, o regulamento determina punição com derrota por 3-0, multa de 50.000 euros e descida de divisão, a qual poderá ser evitada se for justificada com comprovado motivo de força maior. A administração da SAD chega a admitir declarar o abandono da competição, o que poderia acarretar para o clube penalizações mais drásticas, como a desclassificação no campeonato, a exclusão das competições profissionais entre um a cinco anos e uma multa de 100 mil euros, além de implicar com a classificação de todos os outros clubes. É sábado e ainda ninguém sabe se há jogo com o Feirense.
A partir daqui, só visto.
21h47 – Dominguez convoca todo o plantel
00h31 – Sindicato insiste: os 16 jogadores das rescisões não vão a jogo
00h40 – SAD diz não ter recebido rescisão de contrato dos 16 jogadores
02h00 – SAD quer ir a jogo e convoca todos os jogadores
12h19 – Sete jogadores concentram-se no Hotel Cristal, na Marinha Grande: Oblak, Shaffer, Barkroth (emprestados pelo Benfica), Djaniny (reforço confirmado do Benfica para 2012/13, Gottardi (lesionado) e os juniores Pedro Almeida e Filipe Oliveira
12h58 – Alhafith, central saudita e um dos 16 que havia rescindido o contrato na sexta-feira, junta-se à concentração no Hotel Cristal
14h38 – O Feirense chega ao Municipal da Marinha Grande e as portas do estádio estão fechadas
15h07 – O sindicato emite um comunicado a criticar Mário Figueiredo, presidente da Liga e acusa-o de telefonar aos jogadores que rescindiram contrato para irem ao jogo
15h36 – Alhafith só vai a jogo se lhe pagarem o que devem. E em dinheiro
15h48 – Faltam 12 minutos para começar o jogo e chegam mais dois jogadores. o nigeriano Ogu, transportado por um dirigente, e o maliano Keita, de táxi
15h57 – Entram as equipas em campo e o Leiria só joga com oito, apesar de a ficha indicar um nono elemento, Keita de seu nome
15h58 –Equipado, Keita recusa-se a entrar em campo enquanto não lhe pagarem
15h59 – Enquanto os seus companheiros sobem ao relvado, Keita abandona o balneário e entra num carro. Também desaparece uma pasta com seis mil euros do balneário leiriense
16h00 – A táctica do Leiria é 4-3-0 (aí está o Chelsea à portuguesa)
16h39 – Único remate do Leiria à baliza, por Shaffer num livre directo. A bola sai ao lado
16h45 – Primeiro golo do jogo, por Miguel Pedro
16h47 – Intervalo, tempo para Mário Figueiredo garantir não ter aliciado jogadores para estarem em campo
16h49 – João Bartolomeu, presidente demissionário do Leiria, tem coragem para fazer ameaças aos jogadores e apelidar de fugitivos aqueles que não vão a jogo
17h51 – Acaba a partida, com 4-0 para o Feirense, que ultrapassa a Académica e salva-se dos lugares da despromoção, onde já está o Leiria (clube e SAD), Bartolomeu e Figueiredo
É triste, certo? A União desce e nunca mais volta.
Avançamos oito anos, já estamos em 2020 e há uma equipa profissional com o desplante de falhar o compromisso de acabar a época. Que nódoa, que campeonato miserável, que tristeza infinita.