A missa do galo tinha acabado há minutos. Era o meu segundo Natal na Terra Santa e, desta vez, decidira percorrer a pé os cerca de dez quilómetros que separam, por estrada, Jerusalém de Belém e participar numa das muitas missas que, na noite de 24 para 25 de dezembro, são celebradas no chamado campo dos pastores. Situado em Beit Sahour, aglomerado populacional nos arredores da cidade de Belém propriamente dita, o campo de pastores é o lugar onde, segundo a tradição, os famosos pastores do presépio escutaram o anúncio do anjo, antes de se fazerem ao caminho para ir visitar o menino-Deus que acabara de nascer em Belém (Lucas 2,8-20).
A missa na qual tinha participado tinha sido em francês, mas, à saída da pequena gruta-capela onde decorrera a celebração, esperava-me uma Babilónia de línguas mudada em alegre Pentecostes de abraços e sorridentes, mas incompreensíveis votos de Bom Natal: dezenas de filipinos, indianos, vietnamitas e camaroneses enchiam o espaço central do recinto, aguardando vez ou, como eu, já “despachados”. Comovido pela espontaneidade desta multidão em festa, abandonei, por momentos, a minha natural reserva e vi-me abraçado a perfeitos desconhecidos a proferir frases em português que sabia que nunca seriam compreendidas e a escutar os indecifráveis sons das não menos absurdas respostas.
Embriagado pela emoção e com desejo de a saborear em silêncio, tomei a decisão – generosa, mas provavelmente pouco discernida – de regressar a pé a Jerusalém. Era tarde, mas eu sabia que não haveria qualquer risco. Esperavam-me dez quilómetros de marcha, mas não estava propriamente cansado. Parti do campo dos pastores e lá fui subindo a Belém, dirigindo-me ao checkpoint. Ao princípio, a escuridão envolvente e a agradável brisa noturna foram bálsamo, mas lentamente acabei por me deixar afetar pela fealdade da paisagem: a pobreza das casas, as tantas construções abandonadas, o asfalto irregular da estrada deserta, os horríveis reclames comerciais. Um amigo que conhece bem a Terra Santa diz, em tom de exagero, que Belém é a cidade mais feia do mundo. Naquela noite, dei-lhe razão.
Mal sabia eu que o ponto mais baixo estava ainda por chegar… O checkpoint 300, que permite superar o enorme muro que hoje em dia separa Belém de Jerusalém, e a Cisjordânia de Israel, era, àquela hora, pouco depois das zero horas do dia 25 de Dezembro, um lugar sem filas, com um ar quase abandonado. Entrei no longo corredor gradeado paralelo ao muro que dá acesso ao controlo de segurança e comecei a experimentar a sensação de claustrofobia que este tipo de construções pretende inspirar. Mesmo vazio, o corredor impõe a experiência carcerária aos que o percorrem, como se passar de Belém a Jerusalém fosse um crime a expiar, uma violação punida no ato mesmo de a cometer. Foi também como um intratável criminoso que me senti olhado pelos aborrecidos adolescentes soldados que efetuavam o controlo dos passaportes. Mesmo sendo europeu, mesmo não tendo nada a temer, a brutalidade dos gestos, o desprezo no tom de voz, a distraída indicação para prosseguir caminho confirmaram-me a sentença que grita do betão e do arame do checkpoint.
E que contraste com o que tinha sucedido horas antes! Ao chegar a Belém vindo de Jerusalém, o mesmo checkpoint parecia a entrada da “vila do Natal”. Os mesmos soldados israelitas saudavam efusivamente os estrangeiros que vinham celebrar o Natal a Belém, distribuindo pacotes de guloseimas com votos de Bom Natal. Uma imagem desconcertante, seguramente, mas que dera um toque humano ao alto muro que se erguia diante de nós. Agora, depois da meia-noite, voltava a triste normalidade da desconfiança e da separação, que transformou os quase oito quilómetros que ainda me separavam de casa numa penosa meditação sobre os dolorosos frutos do infindável conflito israelo-palestiniano.
Nos anos que seguiram regressei muitas vezes àquela noite de Natal. Antes de mais, para confirmar que mesmo quem frequenta a escola de Santo Inácio tem momentos de “curto-circuito mental” nos quais manifesta o discernimento de um calhau de calçada. Depois, e sobretudo, para olhar para o mistério da Incarnação e o nascimento de Jesus com o realismo e a seriedade que esta festa reclama. Confortado pelas cores quentes das luzes, embalado pelas canções de época e anestesiado pela fartura à mesa, caio, frequentemente, na feliz tentação da bonomia, que transforma o Natal numa festa da boa vontade, dos bons desejos, enfim, das boas maneiras. Muitos dirão que já é tanto e talvez tenham razão, mas inclino-me a pensar que só aquilo que resiste aos vendavais da História e das nossas histórias pessoais merece a rendição incondicional da nossa alegria.
O Natal só pode reclamar isso, mesmo no sítio mais feio do mundo, mesmo no coração de um conflito que só parece conhecer deploráveis desenvolvimentos, se for a celebração da teimosa manifestação na carne do teimoso Deus trinitário. Como o sugere o prólogo do evangelho de São João, com a lucidez cortante da verdade, o nosso é um Deus que veio aos “seus”, sabendo que o recusariam, fascinados como estavam pelas trevas (João 1,11). É esta vinda, esta loucura divina, que constitui o núcleo e a força humilde do Natal. Como naquela noite há dois mil anos e como neste meu “traumático” Natal, o essencial é aquilo que Deus fez e faz, mesmo quando o mundo fica indiferente ou a realidade parece desmentir as promessas feitas. É daqui, desta surrealista teimosia divina que nascem para nós, cristãos, a esperança e a alegria, às quais se opõem, muitas vezes, todas as sensatas razões do pessimismo. Mesmo quando humanamente tristes e até desesperantes, a História e as nossas histórias são lugares habitados, onde palpita sempre, discreta mas indefetivelmente, o coração menino de Deus. Abrir-se a esta certeza dos simples é, muito possivelmente, a maior graça que podemos pedir em qualquer Natal, e provavelmente a única capaz de nos unir verdadeiramente àqueles e àquelas que, na Terra Santa e em tantos outros cantos do mundo, suspiram, mesmo sem o saber, pelo Príncipe da Paz.
Um Santo Natal!