Na política não faltam boas histórias, muito menos na corrida para a presidência norte-americana que está em curso. Este fim-de-semana Donald Trump sobreviveu a um atentado à sua vida — um momento que será marcante para o eleitorado americano, que já se demonstrava inclinado para remover Joe Biden da Casa Branca. As fotografias que circulam desde então de Trump, de punho erguido e sangue a escorrer da cara, reforçam a narrativa de um candidato que, contra tudo e todos, tenta regressar a Washington nesta corrida pela alma dos Estados Unidos. É uma história notável.
Por sua vez, que história nos conta Biden? Enquanto que a sua eleição em 2020 lhe ofereceu a oportunidade para se afirmar como a antítese à irresponsabilidade do populista Trump num clima de crise e pandemia, a sua presidência foi, para todos os efeitos, como uma refeição sem tempero: nutritiva, mas insípida. Foi uma presidência boa — primeiro, porque na sua génese comprovou que se podia combater o radicalismo de Trump com bom senso. Depois, porque conseguiu abrandar os piores instintos que têm influenciado a política externa americana, que consistem na rejeição da cultura estratégica americana de ordenamento e cooperação internacional. E em última análise diria que Biden se conduziu como figura unificadora e senatorial, procurando sempre exaustar todas as soluções consensuais possíveis num ambiente legislativo que lhe foi hostil desde o primeiro dia. Dito isto, ninguém compra bilhetes para ir ver este filme.
Proponho então um exercício: peguemos no cliché mais famoso dos westerns do século passado — a figura do pistoleiro herói que, depois de cumprir o seu dever, sai de cena com dignidade, cavalgando em direção ao pôr do sol no seu cavalo branco. Compete a Biden, no interesse de assegurar o seu legado e de levar o Partido Democrata à vitória em Novembro, ser este herói, por mais que lhe pese.
Os americanos já não sentem o mesmo apelo por Biden que sentiram em 2020. O presidente, apesar do seu currículo, vê hoje a sua capacidade e energia para governar escrutinadas à conta do seu desgaste visível. Estas preocupações são legítimas e merecem uma resposta mais assertiva. É evidente que a legitimidade de Biden está em causa, e poucos são os que se encontram satisfeitos por um leque de escolhas presidencial que mais se assemelha a um lar de terceira idade. Com Biden cada vez mais incapacitado (enquanto escrevo, surgem notícias de uma nova infeção por coronavírus do presidente) torna-se urgente, tanto para o seu legado como para o futuro destas eleições, que o presidente abandone a sua candidatura com dignidade, a favor de sangue novo capaz de fazer o máximo desta campanha até Novembro.
Mas esta mudança não será fácil. O primeiro desafio encontra-se em convencer o presidente a seguir este rumo. A sociedade civil e notáveis do Partido Democrata levantam vozes por esta mudança, sendo cada vez mais incontornável aceder a um órgão de comunicação social norte-americano e não encontrar outro novo apelo ao abandono da corrida de Biden. No entanto, Biden, por teimosia pessoal ou aconselhamento indulgente e acrítico, resiste ainda hoje a estes pedidos, insistindo que a sua experiência e capacidade são inquestionáveis e conduzirão à vitória. Talvez assim seja, mas neste jogo de probabilidades (no qual a revista britânica The Economist atribui a Biden uma hipótese de um em quatro de ganhar a Trump) qualquer incremento deve ser bem-vindo. Torna-se cada vez mais claro que insistir na manutenção de Biden enquanto candidato é contraproducente, senão mesmo autodestrutivo para os Democratas.
Se Biden continuar a insistir na sua candidatura a corrida está provavelmente perdida, mas ainda há esperança, sendo as próximas semanas fundamentais para definir um novo rumo. Compete então a Biden e aos seus conselheiros, família e amigos, decidir o destino desta campanha. O presidente pode, como tem tentado, remar contra a maré da opinião pública e do crescente número de Democratas próximos dele, continuando a apostar que o valor da sua pessoa será maior que o custo da sua idade (provavelmente custando a eleição aos Democratas). Alternativamente o caminho da desistência passará pela Convenção Nacional Democrata a ocorrer em Agosto. Aqui, os delegados (cuja esmagadora maioria já se comprometeu a votar em Biden) poderão, se até lá Biden renunciar a sua candidatura, escolher em convenção aberta um novo candidato para levar os Democratas à presidência — um candidato mais jovem, energético, e com legitimidade renovada pelo processo da convenção.
Mas quem poderão os democratas apresentar em alternativa a Biden? Kamala Harris é a escolha intuitiva. Com a maior experiência executiva de entre os dois candidatos seguintes é, no entanto, uma escolha pouco ambiciosa, pecando pela impopularidade a favor da familiaridade que a vice-presidência lhe conferiu. Se Biden abdicar da sua candidatura, é provável que dê o seu apoio publicamente a Harris (uma decisão eventualmente precipitada e que poderá descartar melhores candidatos).
Gretchen Whitmer, a governadora do Michigan, é uma figura popular entre os Democratas, com experiência governativa marcada por reformas ambiciosas e sucesso eleitoral no seu estado. Dada a sua idade, e juntamente com a possibilidade de se tornar a primeira mulher presidente dos Estados Unidos, aparenta ser a candidata mais capaz de animar a campanha Democrata com um novo ímpeto.
Por fim, Gavin Newsom, o governador da Califórnia, é uma figura familiar para quem segue o ciclo de notícias norte-americano, conhecido por ser um forte aliado da administração Biden. Newsom, apesar de conhecidas as suas ambições presidenciais e do relativo reconhecimento entre os Democratas, não parece uma opção tão forte quanto a sua competição, podendo a sua escolha resultar mais de uma série de concessões internas entre Democratas, do que uma escolha ponderada do candidato mais capaz de elevar o partido da sua condição moribunda e transformá-lo num engenho capaz de derrotar Trump no frente-a-frente de Novembro.
Ao contrário do que os otimistas que acreditam num novo sucesso de Biden por virtude dos seus méritos face a Trump dizem, não é responsável pintar um cenário fácil para os Democratas. O caminho para uma vitória em Novembro será cada vez mais difícil enquanto a discussão se focar nas virtudes de Biden e se ignorar a sua clara rejeição entre o eleitorado americano. Além disso, o atentado a Donald Trump veio galvanizar ainda mais a sua campanha, tornando o ex-presidente alvo de simpatia de uma ponta à outra do espectro político. O relógio toca para Biden, e se o presidente quer realmente manter Trump longe da Casa Branca o melhor que tem a fazer é, como os heróis pistoleiros do velho oeste americano, deixar o seu revólver de lado e ter a coragem de cavalgar em direção ao pôr do sol.