Passear nas ruas de Yangon, a antiga capital birmanesa, é uma viagem a um passado distante. As cores, cheiros, sabores, sons e paisagens remetem-nos para o início do século XX. Para quem é viajante, é um prazer nostálgico ver os fios elétricos a baloiçar entre postes de eletricidade, os carros antigos a seguirem o seu trânsito e as construções coloniais, meio em ruínas, a colorirem as ruas.

Corria o ano de 2016 e eu estava imerso nessa descoberta de um país que se dava a conhecer ao mundo. Passeava embevecido pelas ruas sem nome de uma cidade com um charme decadente. Gritavam pelo Cristiano Ronaldo quando anunciava o meu país, perguntavam-me se estava feliz a cada interação. A Birmânia, na altura, vivia um estado de êxtase coletivo. A ditadura militar acabara, as primeiras eleições democráticas tinham coroado o partido de Aung San Suu Kyi como vencedor, o exílio tinha terminado e as ruas de Yangon celebravam efusivamente a abertura ao mundo. O fim da ditadura começara (mas não terminara). Finalmente, essa beleza que se escondia por trás de um charme decadente seria, pela primeira vez, digna e democrática.

Não poderia ser maior a minha miragem.

Por oposição, passear pelas ruas de Naypyidaw, a atual capital birmanesa, é uma viagem a um presente distópico. Uma cidade construída de raiz pelo poder militar, magnânima e moderna, opulenta e, surpreendentemente, deserta. Uma capital sem vida, despida de pessoas, escura na identidade e cidadania. Só um prazer sórdido pelas bizarrias deste mundo faz alguém aventurar-se Birmânia dentro para ver uma imensidão de betão desprovido de alma.

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No entanto, o contraste entre estas duas cidades é a alegoria perfeita para o frágil processo de democratização.

Uma cidade outrora pujante, que ambicionava a modernidade, que desejava o fim da sua decadência contra a frivolidade de uma construção militar vazia, feita para o poder pelo poder.

A imensidão de betão sem alma – aqui uma metáfora para o poder militar -, procurou manter as suas estruturas. Garantiu no processo negocial 25% dos lugares no parlamento para o exército, não sujeitos a eleições, mantendo um grande controlo sobre a vida governativa. Tal seria provisório. Nunca o foi.

Aproveitando o isolamento crescente dos Estados Unidos, cedo o exército procurou encurtar a esperança a quem ansiava pela democracia. Utilizou as redes sociais para disseminar o ódio contra os Rohingyas, fazendo deles um inimigo comum e expulsando-os do país através de um trágico genocídio que envergonhou o mundo. Esta clivagem, com um grau considerável de artificialidade, foi provocada na sociedade e exponenciada pelas redes sociais e pela iliteracia mediática da população. Onde já vimos isto?

A dinâmica que opunha as forças democráticas contra as forças militares passou despercebida ao mundo e, na cena internacional, o processo democrático estava cada vez mais deslegitimado quando, afinal, era a crescente influência militar que procurava manter o seu poder através da promoção do ódio, da disseminação de notícias falsas, de desinformação e vis ataques a uma minoria. Tudo ao comando de estruturas que nunca chegaram a cair.

Até que o anunciado golpe de Estado chegou. A esperança deu lugar à resistência e a efusividade deu lugar à luta.

Ao escrever estas linhas recordo-me do discurso de João Miguel Tavares, no 10 de junho, em Portalegre. Não porque me identifique com os pensamentos do autor, mas porque desde esse discurso que me inquieto com a sua interrogação. Qual é, afinal, o nosso desígnio coletivo enquanto país?

Ao ver que um golpe de Estado no maior país do Sudoeste Asiático é apenas uma nota de rodapé na nossa imprensa, esquecido do nosso diálogo público, inquieto-me com esse nosso desígnio.

Quando impera a tão necessária discussão sobre os erros e excessiva glorificação do nosso passado, não podemos esquecer a necessária discussão sobre a identidade que queremos preservar para o futuro. Fomos o país pioneiro da terceira vaga de democratização. Somos cosmopolitas, progressistas, com uma profunda mundividência.

Ser aliado da democracia, dos povos que lutam e da resistência contra a ditadura, ser profundamente globalista, inquieto e curioso é um desígnio do país. Não podemos, enquanto povo, ficar alheios aos acontecimentos mundiais, ignorando a nossa vocação global. Deve ser um desígnio nacional a nossa afirmação como superpotência humanitária, ecologista e progressista. São essas as virtudes que teremos de preservar e projetar no mundo.

Aproveitar o nosso legado histórico, essa curiosidade inata, assumir uma vocação profundamente humanitária e humanista é o melhor que fazemos para pedir desculpa por alguns erros do nosso passado e para, em conjunto, afirmar um desígnio coletivo.

A Birmânia importa. A sua democracia também. Para eles, para o mundo e para nós.