Nenhum debate sobre habitação pode ser levado a sério se deixarmos de parte o processo de licenciamento de obras, como todos os partidos sabem, mesmo os que se fingem distraídos ou os que apresentam para o problema soluções aparatosas. Como sucedeu na Assembleia Municipal de Lisboa, durante a sessão da semana passada, com a apresentação de duas recomendações: uma do Partido Socialista, outra da Iniciativa Liberal. Ambos declaravam a intenção de acelerar os processos. Vejamos em que termos, até para comparar os dois partidos, já que ambos estavam errados de maneiras diferentes.

A recomendação do PS, “Maior celeridade nos procedimentos de licenciamento urbanístico”, era um documento indigno de um partido de governo. Os eleitos do PS governaram Lisboa durante 14 anos seguidos; sabem o que são políticas, sabem que o poder executivo é um exercício de equilíbrios, sabem a dificuldade de ceder e a angústia de escolher, e sabem que as políticas requerem, antes de mais, inteligência. Sabendo isto tudo, como consideram eles que a Câmara deve proceder para acelerar os processos? Contratando mais gente. Relia-se e não se acreditava. A parte retórica do documento consistia numa cascata de injúrias à vereação de Carlos Moedas. Legítimas, sem dúvida; mas inteiramente vazias de crítica ou substância política. A parte deliberativa, ou seja, a parte que produz efeito quando aprovada, recomendava: contrate-se mais gente. De resto, um arquitecto olha para aquele documento (disponível online no site da Assembleia) e cora de vergonha. Qualquer arquitecto – dos que exercem arquitectura, e não dos que pesquisam nos projectos dos outros pretextos para os impedir de exercer – conhece de cor os motivos que levam à irremediável demora dos licenciamentos. Um desses motivos é o excesso de gente, a maneira como as decisões andam de Herodes para Pilatos, e a necessidade constante de justificar o salário daquela gente toda.

Para esse exército de apreciadores, é fundamental rejeitar muitos pedidos, deixando-nos imaginar a tempestade de impurezas urbanísticas que eles impedem de se abater sobre nós. Uma presunção ridícula, já que em trinta anos de profissão nunca um projecto meu se tornou melhor depois de alterado pelos pareceres de suas excelências. Nem nunca vi tal milagre acontecer a qualquer dos arquitectos com quem trabalhei. Nem um único. É também fundamental demorar tempo a apreciar pedidos, e contribuir, ainda que de um modo artificial, para a complexidade labiríntica do processo; não vá o investidor, astuto e bruto, conseguir desembaraçar-se. Nenhum daqueles acrisolados guardiães da legalidade arquitectónica está interessado em ver chegar o dia em que o licenciamento se tornou rápido; nesse dia o cidadão pode perceber que eles afinal são dispensáveis. E no PS ninguém se apercebeu disto? Parece impossível que uma bancada cheia de arquitectos produza aquela recomendação embaraçante. Não era um documento de um partido sério.

A recomendação da IL, “Task-Force Urbanística: Fiscalização”, usava esta linguagem ao gosto do sr. Zeinal Bava para mostrar uma vontade limpa e sincera de acelerar os licenciamentos. Nesse capítulo, era o inverso da anterior. Mas mostrava um decepcionante amadorismo. Por um lado, um grupo de missão (task-force em português) precisa de um princípio e de um fim. É isso que o distingue, faz a tarefa e sai. A IL pedia um grupo de missão para uma tarefa que não tem fim. Quando acabaria a fiscalização? Nunca. E o destino do grupo de missão seria eternizar-se e crescer. No final de contas, a IL pedia o mesmo que o PS. “Mais gente” é a fórmula regimental portuguesa para resolver problemas. Por outro lado, e mais importante, a IL devia saber que o problema não está na fiscalização. Esse é o ponto surpreendente, sobretudo vindo daquele partido. Quem, na IL, escreveu ou autorizou esta infantilidade, precisa de comprar um bibe e de ir para a escola. Acelerar processos é reduzir a burocracia. Não há outra maneira de acelerar processos. E reduzir a burocracia é simplificar regras e regulamentos. Significa facilitar a vida dos privados para os deixar desenvolver a economia (e pagar impostos, e, com esses impostos, contratar grupos de missão); e para os livrar de ser permanentemente perseguidos pelo Estado, um objectivo prosaico e respeitável. Em bom rigor, reduzir a burocracia é um voto de confiança nos cidadãos.

Esta é a mudança que é necessário fazer. E o que pedia a IL? Mais fiscalização. Por outras palavras, a IL pedia mais meios para reforçar o papel punitivo e persecutório do Estado. À dúvida sobre se o Estado é “pessoa de bem”?, temos de responder que sim, até por uma razão prática: não há outra maneira de pensar a democracia. Mas o cidadão deve poder desconfiar. É saudável que desconfie, e um partido como a IL devia apreciar. O Estado tem sobre o cidadão um poder desproporcional. Que o Estado, por posição de princípio, e como é próprio da esquerda, desconfie do cidadão, já não é saudável nem admissível. E o partido chama-se Iniciativa Liberal; era bom que fossem mais liberais, valha-nos Deus, a direita precisa de políticos liberais. “Liberal” significa defender certas liberdades, sobretudo perante o Estado. Se entregam à esquerda a autoridade no campo da moral, e se pedem o reforço do Estado na economia, os eleitos da IL são liberais em quê?

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