É um labirinto aquilo que espera quem conseguir cruzar o limiar da biblioteca do mosteiro em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, cujas últimas palavras são «Stat rosa pristina nomina, nomina nuda tenemus» («A antiga rosa permanece apenas no seu nome, palavras nuas é tudo quanto temos»). Na base do torreão, por entre a neve, o escritor italiano não colocou bouquets de rosas mas tufos de miosótis, flor de eleição do grande bibliotecário do mundo – Jorge Luís Borges. Na verdade, as histórias do bardo argentino estão tão povoadas de miosótis – planta de curiosíssimo significado etimológico (μυοσωτίς – literalmente, ‘orelha de rato’) – quanto de labirintos, como A Biblioteca de Babel, publicada em 1941 e que, juntamente com O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, serviria de modelo para a labiríntica biblioteca medieval de Eco.

Desde a primeira vez que esta palavra foi pronunciada, o intrincado dédalo – também assim chamado, por antonomásia, a partir do nome do construtor do labirinto do rei Minos em Creta – nunca deixou de inspirar artistas, filósofos, arquitetos e até programadores contemporâneos de algoritmos aleatórios, transportando consigo toda a sua carga de inquietação, perplexidade e simultaneamente tentação e sedutor encanto.

De acordo com a mitologia, o labirinto de Cnossos foi construído pelo rei Minos, na ilha de Creta, para encerrar o monstruoso Minotauro, uma criatura feroz com corpo de homem e cabeça de touro. Era, como nos conta Virgílio, no livro VI da Eneida, um emaranhado de salas, corredores e galerias circulares, projectado por Dédalo, o arquitecto que, no final da empreitada, se viu prisioneiro da sua obra, encerrado na sua própria construção juntamente com o filho, Ícaro. Para fugir do labirinto, concebeu umas asas fixadas com cera que causaram a morte do rapaz, pois este, afoito e curioso, aproximou-se em demasia do sol e acabou por derretê-las e cair ao mar.

De seguida, Teseu, filho do rei de Atenas, matou o Minotauro, que de nove em nove anos reclamava o sacrifício de sete raparigas e sete rapazes atenienses. Saiu airoso da empresa apenas graças à filha de Minos, Ariadne, que por ele se apaixonou. A jovem, depois de muitos tormentos, decidiu abandonar-se ao amor e ajudou Teseu a sair do labirinto. Ofereceu-lhe então um novelo vermelho que ele deveria desenrolar à medida que avançava para depois seguir os seus próprios passos para trás.

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Essa imagem fascinante de linhas curvas, apertadas e precisas, tal como aparece representada numa das trinta e três moedas encontradas na ilha de Creta e que datam da época minoica, devemo-la a Arthur Evans que, no final do século XIX fez emergir a quase totalidade dos 24.000 metros quadrados que hoje compõem o sítio arqueológico de Cnossos, palácio de Minos incluído.

Ao longo dos tempos, muitos foram os que, cheios de curiosidade, arriscaram embarcar na mesma empreitada de Teseu para tentar sair do labirinto de Cnossos. E também nós podemos experimentá-lo agora, seguindo as linhas do desenho com o dedo ou com uma caneta. Todos tentaram partir do seu centro para encontrar algures, ao longo do percurso imaginário, uma saída, tão evidente na parte superior direita do desenho. O erro é de método e, portanto, de parâmetro, palavras que, como veremos, derivam da mesma raiz.

Impossível – porque não tem limite – pensar no labirinto como um todo, que é talvez a mais antiga metáfora dos limites humanos. Pelo contrário, temos de pensar o interior do labirinto, dentro dele, partindo do seu centro e andando para trás: parece evidente que, a menos que tivéssemos asas, por algum lado devemos ter entrado. Apenas a partir de dentro do labirinto se pode descobrir o caminho de saída, nunca ao contrário.

O labirinto cretense é o símbolo daquela prisão mental em que, para cada situação ou circunstância de vida, nos dedicamos a aplicar o mesmo estafado modelo de pensamento, o mesmo esgotado esquema que para tudo prevê respostas fechadas, e em que, como autómatos, repetimos os passos de outros e nos negamos a possibilidade de escolher o nosso mais íntimo caminho.

Ser livre – de um labirinto ou de um medo que nos escraviza – é uma pergunta. A resposta, o tal caminho, apenas dentro de nós o encontraremos, andando para trás nos nossos esquemas mentais, recusando entregar seja o que for ao acaso ou às mãos do já feito ou já dito.

Todos temos o nosso fio de Ariadne, que nos impele para a frente e nunca para trás, na hora de compreender o porquê dos nossos passos presentes: a arte de saber escolher, essa grega harmonia, encontra-se na dolorosa sinceridade que esta consciência acarreta. Por vezes somos assim: desejamos voar para um outro lugar, mas somos nós que nos cortamos as asas.

Os gregos veneravam uma deusa capaz de proteger a escolha, sempre diversa imprevisível, para a qual a vida nos convoca. Esta deusa era Μῆτις (Mêtis), mãe de Atena, a virgem sábia e guerreira que protegia também a viagem dos Argonautas. Μῆτις era a capacidade de nos agarrarmos solidamente à realidade de forma cúmplice e dúctil para transformar as nossas fragilidades em cúmplices das nossas decisões mais inesperadas; era a disponibilidade para compreender que sim, que desta vez está a mesmo acontecer connosco e que, por isso, devemos agir, mesmo no meio da dor, e do cansaço que toda a mudança acarreta. Μῆτις era a plasticidade que consentia a vitória onde nenhuma solução ou possibilidade de escolha teria alguma vez ocorrido a outros, apenas a nós; tal como no famoso labirinto de Cnossos, é a Μῆτις a quem devemos recorrer sempre que nos dizem que algo é impossível ou que não há alternativa.

E talvez seja por isso que adoecem certos corações pela noite, pensando quão longe pode estar o sonho e quão perto o negrume de horas de sono supérfluas, vazias, cumpridas por desfastio, enquanto a teimosa urgência de partir sem aviso lateja naquele único rosto – o último depois do crepúsculo, o primeiro antes da aurora – que a todos se preferiu e que persevera na vertigem, na brecha, na fome e no sonho.

Μῆτις é, então, a capacidade de escolher, de interpretar o real e de agir, uma forma de pensar tão sincera e tão heroica, abandonada desde os tempos dos gregos, que a cada dia regressa, dotada de um valor excepcional, a todas as nossas vidas.

O nome da deusa da sabedoria baseada no limite deriva da raiz indo-europeia *me-, raiz que, surpreendentemente, encontramos em muitas palavras: em μέτρον (métron), por exemplo, que significa “medida”, “proporção”; em μήδομαι (mḗdomai), verbo que significa “meditar”, “refletir”, “idear”, mas também “curar”, “cuidar”. E é precisamente deste sentido de flexível sabedoria, medição e íntima reflexão que deriva o nome Μήδεια (Mḗdeia).

Creio que nem Borges nem Eco teriam desdenhado saber que o nome mais comum do miosótis é, em Portugal e em quase todo o hemisfério norte, Não-me-Esqueças. Talvez seja esse perene sussurro interior aquilo que nos permite, contra toda a evidência, confiar que em nenhuma das intrincadas pregas do tempo o amor (esse fragilíssimo fio de Ariadne) nos falhará com a “arte perdida de encontrar o caminho” e a luz.