Face a tempos adversos – melhor, face à vida – como já alertava Espinosa, não importa chorar, rir, nem protestar, mas compreender (Tratado Teológico-Político 1.4). Sim, intellegere: «recolher [legere] o interior [intus]» e «a relação [inter]» entre as coisas. Não “opiniões”, mas, como diria Empédocles, “pensamentos longos” que suturem as fissuras, recomponham os fragmentos – palavras por dizer, a inesperada frescura de velhos gestos reencontrados – aqueles espaços abertos e vazios onde, por entre a ânsia e o medo, jogamos, com imperita paixão, o espanto de viver, mesmo quando de mãos e pés e atados.

A Antiguidade alimentou verbalmente essa ambiguidade em palavras curiosas: Φάρμακον (phármakon), por exemplo, era o nome dado em grego às poções e aos medicamentos, vox media de que deriva o nosso “fármaco”, palavra suspensa entre o duplo sentido de veneno que pode matar e remédio que pode salvar. E φάρμακος (phármakos) era na Grécia o nome do “mago”, mas também do “curandeiro”. Como Medeia, essa perigosíssima maga e, simultaneamente, apaixonada curandeira.

Com enorme sabedoria, Platão utiliza o duplo sentido da palavra φάρμακοv no Fedro, um diálogo dedicado ao amor enquanto metáfora do respeito pelas palavras. Nesse texto, a palavra aparece, em pouquíssimas linhas, duas vezes, mas com significados opostos: “veneno” (φάρμακοv) é para Platão escrever sem consciência, usar as palavras apenas para comprazimento pessoal, sem querer comunicar nada ao outro, num monólogo solitário e estéril que não admite respostas nem perguntas; “cura” e “remédio” (φάρμακοv), por outro lado, é a dialéctica, o confronto incessante com o próximo, o discurso preciso em busca da verdade.

O φάρμακοv de Medeia recebeu o nome do próprio Prometeu, aquele que fora castigado por Zeus por ter revelado o segredo do fogo aos primeiros homens, que viviam em miséria e sofrimento. “Teu divino delito foi ser bondoso, / tornar, com teus preceitos, menor / a soma dos humanos infortúnios”, escreveu Lord Byron no poema que dedicou ao Titã, que, compadecido do infeliz género humano, tudo descobriu e tudo ofereceu.

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O unguento nascera do negro sangue de Prometeu, que escorria pelas remotas terras do Cáucaso sempre que contra ele investia a águia enviada por Zeus para o punir. Dessas gotas nascera uma alta e esplêndida flor, cor de açafrão; da sua raiz, Medeia recolhera a essência com uma concha para com ela fazer uma potentíssima poção. Quem untasse o seu corpo com aquele óleo mágico durante um dia, tornar-se-ia invulnerável aos golpes do bronze e ao calor do fogo.

Quando a Aurora chegou, Medeia limpou o rosto encharcado de lágrimas. Apanhou os indómitos cabelos loiros em delicadas tranças, deixou a pele a brilhar com o néctar e vestiu a mais elegante túnica branca, apertada na cintura com magníficas fivelas. Pegou no seu cofre e escondeu a poção debaixo da faixa que lhe cobria o seio. E, à espera do momento certo para conhecer Jasão, começou a caminhar para cima e para baixo pela casa com passos seguros, “esquecida do infinito presente mas igualmente do futuro, ainda mais infinito”.

Todos queremos ser livres, todos reivindicamos liberdade. Libertas em latim, ἐλευθερία (eleuthería) em grego, são palavras que recuam a uma antiga raiz indo-europeia *leudhero-, isto é, “aquele que pode pertencer a um povo”. A liberdade foi sempre a condição do homem sem vínculos desde o nascimento, por oposição à do servus, o escravo, ou à do libertus, o escravo liberto por um punhado de moedas.

Apenas um homem livre pode espiritualmente escolher pertencer a uma entidade que lhe seja superior: um Estado, uma religião, uma família, um amor. O servo, pelo contrário, qual objeto, pertence a alguém. O seu pensamento não é adesão, mas posse; a sua palavra não é expressão de uma vontade, mas cumprimento de uma ordem.

A vontade de sermos livres constitui o motor de qualquer história, desde a História com maiúscula, a História do mundo, até à mais pequena, a história pessoal de cada um.

Em seu nome, organizaram-se protestos, revoltas, guerras, revoluções capazes de alterar as fronteiras geográficas e éticas de povos inteiros.

É por causa das suas reivindicações de liberdade que o ser humano deixou, em alguns momentos, mais ou menos longos, de estar sozinho e se juntou a outros. Tornar-se já não “um”, mas “um de”; daqueles que fizeram a História e que a mudaram. Somos verdadeiramente livres apenas juntamente com alguém ou algo maior que nós. A solidão, por outro lado, é o caminho mais certo e curto para a vileza da servidão.

Todos os dias, desde o primeiro, exigimos em alta voz a liberdade, lutamos contra todos quantos nos impeçam de escolher o que fazer, para onde ir, como pensar, em que acreditar, quem amar. Esquecemos frequentemente, contudo, que ser livre significa ter o direito a um exercício, sim, mas, simultaneamente, um dever a cumprir – o de escolher. Decidir de quem ou do que nos libertar e o que fazer com a liberdade conquistada. Caso contrário, qual o sentido de ser livre?

O sentido grego de liberdade era, pois, tão profundamente humano que mais tarde soube tornar-se político, universal: não residia apenas na possibilidade de se considerar livre de um tirano, de um estrangeiro, de um senhor, mas, sobretudo, na capacidade de exercer o direito a escolher. Como Jasão, Medeia e os Argonautas.

A liberdade é, portanto, um caminho a percorrer – “uma obediente caminhada”, chamava-lhe Primo Levi. E é por isso que sempre foi assustadora. Todos queremos ser livres “de qualquer coisa”, mas no preciso momento em que nos tornamos livres, somos obrigados a escolher “qualquer coisa”. E escolher significa sempre renunciar a alguém ou a algo.

O espaço vazio entre estas duas preposições, “ser livre de” e “ser livre para”, pressupunha para os gregos o conceito de medida, de moderação, e nunca de excesso. Se a primeira exortação de Delfos nos pede para nos conhecermos e redescobrirmos todos os dias, a segunda recorda-nos exactamente a medida de saber viver plenamente livres e humanos: μηδὲν ἄγαν (mēdén ágan), diz o oráculo, “nada em excesso”.

A sintaxe da liberdade humana segundo o pensamento grego consiste, em toda a sua dignidade e em toda a sua plenitude, nisto: não temer os dias, encher as mãos de chuva, de experiência, de aladas feridas por cicatrizar; velar pelos encontros que são como caminhos e pelos reencontros que são como regressos; ousar enfim habitar o desabrigo da perene interrogação – o que é que a vida nos quer dizer com tudo quanto nos acontece?

E em crer que pode ser afinal na falha, na ferida, no sangue, no grão, na aspereza, na fugaz rugosidade dos passos que um dia, ingénuos e convictos, demos que porventura semeámos a jubilosa ousadia da felicidade.