Se alguma vez me virem de saltos altos, sejam simpáticos. Estarei a fingir que está tudo bem, mas o meu sorriso há-de ser falso, apenas para cobrir a dor. Sentir-me-ei como se estivesse a pisar cinzas quentes, os meus dedos do pé estarão dormentes e os meus tornozelos a lamentar-se. Os saltos fazem-me mais alta e dão-me pernas mais elegantes, mas nada disso compensa o sofrimento. Esqueci-me logo das dores do parto. Mas ainda lembro as dores de uma hora à espera do autocarro nocturno em King’s Cross, com botas novas de saltos altos, há vinte anos.

ObsLPeppercalçada27Set14

Tenho muito admiração pelas mulheres que passam os seus dias de saltos altos. Também me preocupo com a sua sanidade mental, a sua capacidade de aguentar a dor (versus o seu desejo de exibir uma aparência elegante) e os seus calos. Mas acima de tudo (porque gosto muito de sapatos), invejo-as. Bem, invejo as que sabem andar com elegância sobre saltos vertiginosos, e que não têm o aspecto de um potro a dar os seus primeiros passos, acabado de cair do útero da mãe. Não há muitas que consigam.

A minha admiração é ainda maior pelas mulheres (e pelos homens) que conseguem andar bem de saltos altos em Lisboa, na calçada. Admiro a capacidade de se deslocarem para cima e para baixo (para baixo é mil vezes pior) em pedras que, de tão devastadoramente gastas, têm o brilho de vidro, e também a arte com que evitam as pedras soltas e os grandes buracos.

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Andar na calçada com sapatos rasos e sensatos já é suficientemente difícil. Aqueles que o fazem com saltos altos merecem, por isso, todos os louros. Nos dias chuvosos, é ainda pior, e todos, em saltos altos ou rasos, parecem potros raquíticos. Quando a calçada, já brilhante e gasta, fica molhada e duplamente perigosa, especialmente nas inclinações, vemos toda a gente, em todos os tipos de calçado, a dar cada passo com todo o cuidado. Tentam parecer que andam normalmente, quando na verdade estão cheias de medo que o seu próximo passo as deixe de rabo no chão ou com o pescoço partido, antes de chegar ao escritório. Estou até a pensar em inventar um material para solas completamente à prova-de-calçada… ainda não existe nada no mundo que sirva … não há plástico, nem couro, nem silicone, nem borracha, nada que previna deslizamentos na calçada a 100%.  

A calçada é linda e é um grande ícone de Lisboa, mas, por amor de deus, quem é que a achou uma boa ideia? Há centenas de anos, quando começarem usar calcário como pavimento e, depois de um tempo, quando tudo ficou muito afagado e brilhante, porque é que ninguém disse: “Ó pá, realmente, isto ainda é capaz de não funcionar bem. Que tal inventarmos asfalto ou outra coisa, porque, estás a ver?, as cidades portuguesas têm muitas colinas, precisamos de alguma coisa que agarre!”

A calçada está cá há séculos, é demasiado tarde para mudar, como acontece com todas as tradições. Não podemos desfazer-nos dela. Faz parte deste sítio, do património. Quando se ouvem sugestões de que a calçada deve ser substituída por asfalto, estou rigorosamente do lado de “não!! nem pensar!!!”, porque é tão importante para o aspecto e o toque de Lisboa e do resto do país. Uma parte de mim, porém, imagina o dia em que será possível andar a pé na cidade sem nos inquietarmos com as áreas de calçada muito polida, em que não reparamos até ser tarde demais, ou com os dias chuvosos, ou com as pedras soltas que partem tornozelos. Não desejo que esse dia chegue, mas… desejo.

Lisboetas em saltos altos, saúdo-vos!

(traduzido do original inglês pela autora)

 

Beating the pavement

 

If you ever meet me in high heels, be kind to me. I will be pretending that everything is fine, but my cheerful smile will belie my agony. My feet will feel like they are on hot coals, my toes will be numb, my ankles will be aching. Heels might make me a bit taller and give me elegant calves, but that is no compensation for the pain. I have forgotten the pain of child birth, but I still remember the pain of waiting for an hour for a night bus at King’s Cross wearing a pair of new high-heeled boots, twenty years ago.

I truly admire women who spend their days in high heels. I also worry about their sanity, their pain threshold vs. their desire to look good, and their corns, but above all, because I do love a good shoe, I envy them. Well, I envy the ones who can walk elegantly in their vertiginous heels, and don’t look like foals taking their first steps having just fallen from their mothers’ wombs. There aren’t that many who can truly do it.

Even more than I admire women (or men) who can walk properly in heels, I admire those Lisboetas who can do it on calçada, the limestone mosaiced pavement of Portugal. I marvel at their ability to walk up and down the perilous cobbles (going down being so much worse than going up), devastatingly worn down to a glassy shine, plus avoiding the loose stones and the gaping holes.

Walking on calçada in sensible flat shoes is hard enough, so the high heeled who manage it should be given an award. On wet days in Lisbon, it’s even worse, and everyone, whether they are in high heels or not, turns into a wobbly foal. When the already shiny and worn calçada becomes wet and doubly perilous, especially on the thousands of hills, everyone in every kind of shoe can be seen gingerly picking out their steps on the calçada, trying to look as normal as possible, while worrying that their very next step will lead them to falling on their arses or breaking their necks before they even get to work. I am considering inventing a material for shoe soles that is entirely calçada proof… there is nothing in all existence that does it yet… no plastic, no leather, no silicon, no rubber… nothing that will prevent calçada slippage 100% of the time.

Calçada is gorgeous to look at. It’s gorgeous to touch when it’s really shiny. It’s an iconic part of gorgeous Lisbon, but by god, who thought it was a good idea? All those hundreds of years ago, when they started to use limestone as a paving material and, after a while, when it got really shiny, why didn’t someone say “hey, actually, after all… this isn’t going to work out. Let’s invent asphalt or something, cos, you know, Portugal is pretty hilly, we need some grip!”

Because now it’s been around for hundreds of years, it’s just too late, just like all traditional things. We can’t get rid of them. Calçada is a part of the place, it’s part of the heritage. Whenever it is mooted that maybe it should be replaced in places by asphalt, I’m firmly in the “no! don’t even think about it” camp… because it is so incredibly important to the look and feel of Lisbon and the rest of the country, but a part of me imagines a day when it will be possible to walk easily round the city, without worrying about those shiny patches that you don’t notice until it’s too late, or rainy days, or ankle breaking loose stones. I don’t want that day to come, but I kind of do.

Lisboetas in heels, I salute you.