1. Já cheira a eucalipto, estamos a chegar. Depois, o ritual. Reeditado pela milionésima vez e cumprido com gestos e hábitos já sem idade, o que em nada tinge a alegria do “voltar”, antes reforça a sua antecipação. Entrar em casa, pôr as alcofas na cozinha — carregadas como se viéssemos de vez para um ermo –. passar a porta do jardim. Para, num relance, perceber o que foi a vida daquele verde enquanto andávamos por outra vida em Lisboa. A nossa, aqui, começa pelo “lá fora”.

As camélias exultam (tantas, será “ano de camélias”?) e não há flor mais bonita, o debrum de malmequeres do buxo continua mortiço (maldito inverno), os limoeiros ganharam viço, a relva, sempre só “assim-assim” desde que uma chusma de futebolistas de palmo e meio ciclicamente vai dando cabo dela. E o cedro que caíra com uma tempestade “afinal” não era “salvável”, funesta notícia que nos dá agora o Rui, que olha por este pequeno mundo. Morrer uma árvore (um cedro daqueles, morrer-nos?) pode doer como se fosse um de nós. E como se fosse um de nós, há agora um impreenchível espaço, à espera de qualquer coisa que não sabemos o que seja.

2. Arrumam-se os sacos, acende-se a lareira, abre-se o frigorífico (que terei cá deixado ficar que não me lembro?), organizam-se jornais e revistas sempre ilusoriamente trazidos para ler aquele “recomendado” artigo ou ver a “tal” reportagem, mas depois, no curso das coisas, o trabalho que sobra para o fim de semana (será defeito exclusivo nosso, este “sobrar”?) leva a melhor.

A seguir ao almoço trabalha-se, cada um de nós em imaginários “escritórios”, na mesma sala, enquanto vai havendo, sorte nossa, “alguéns” que não desgostam inteiramente dos nossos respectivos “serviços”. Ainda bem. Mais vale agradecer que lamentar embora às vezes me apetecesse mais ir às Caldas ver as montras da Rua das Montras, andar pelo campo à solta ou simplesmente a horas mais mortas, ouvir as missas de Haydn ou os meus amigos fadistas de quem tenho andado tão afastada desde que morreu o Zé Pracana — e onde andará ele a tocar agora? E que bem tocaria no silêncio espesso que costuma envolver as noites fora de portas.

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3. Nunca há “trabalho” que passe à frente das idas ao mar. O Atlântico, com a ferocidade de que é capaz, encarrega-se de devorar obrigações e anular deveres. Neste Oeste, manda ele. Andar por ali, num ar de maresia, à espera de ver o dia levantar-se sobre o oceano — muitas vezes tarde porque isto é poiso de teimosas neblinas — é como um dom. Ganhei-o pela antiguidade da paciência com que, Inverno ou Verão mas com o resto do país a brilhar ao sol, me habituei a que a nuvem aqui ancestralmente estacionada se desfaça de vez. E mesmo quando às vezes não acreditamos que ela se suma porque o nevoeiro lembra um tecto baixo sobre a nossa cabeça, eu espero.

Nessas horas de pasmo e expectativa, lembro-me sempre daquilo que Almada Negreiros (agora tão vibrantemente vivo na Gulbenkian) dizia destas paragens. Amigo íntimo de um tio avô meu, veio uma vez a convite dele passar uns dias a este nosso sítio. Estava-se em Julho de 1922 e numa carta para Lisboa endereçada a uma amiga, Almada queixava-se que “ aqui na (…) só ao meio dia é que parece Verão”…

Eram as neblinas. Mas depois, o seu olhar intenso captava o infinito da paisagem:

“Isto é o sítio mais bonito de todos – isto é a Junqueira destes sítios”, escrevia ele sobre esta mesmíssima caprichosa geografia onde agora melancolicamente escrevinho eu uma crónica sem eira nem beira. Notando a sintonia entre o olhar do artista, captado num Verão há quase um século atrás, e o meu próprio olhar fixado no “hoje” dos dias. E guardo-a como uma imagem, mesmo que irrelevante, uma lembrança, mesmo que anódina, um quadro, mesmo que menor, da minha colecção privada. (Se um dia, quem sabe, os juntasse a todos, descobriria em relevo o que a vida deu, o que a vida pediu, como é que ela se escreveu.)

4. Amanhã ou depois de amanhã tudo ou quase tudo aqui se repetirá, igual ou quase igual. Sempre soube que este estar aqui, este ritual, estas rotinas, dão sentido e substância ao meu viver, mas agora descobri que são sobretudo grandes fornecedoras de oxigénio para enfrentar o resto, que anda feio e é mau. Fora deste porto de abrigo parece-me o ar cada vez mais rarefeito e vejo a maré cada vez mais baixa. Sucede porém que face a esta espécie de supra poder civilizacional que a esquerda se outorgou e quer deixar como herança, e à paralisia muda da direita e sejam lá eles quem forem, somos misteriosamente muitos poucos. Pouquíssimos. Não sou de praticar a fuga e vomito “desistentes”, mas enquanto aqui estou, tenho pelo menos a (intermitente) ilusão de estar a salvo. Embora saiba que o cheiro fétido da maré baixa e a atenta observância das suas causas, de tão devastadoras, irão exigir bem mais que esta crónica efémera. Para coisa efémera, bastam as camélias.