O “Capitalismo democrático” está em crise, argumenta Martin Wolf. No seu último livro, A Crise do Capitalismo Democrático, o comentador-chefe de economia do Financial Times afirma que o sistema democrático e económico em que vivemos, embora ainda seja o mais eficaz e próspero, enfrenta desafios severos. Wolf, um conhecido pessimista, pinta um quadro sombrio da situação atual. No primeiro capítulo, o autor começa por traçar paralelos alarmantes entre os dias de hoje e os anos trágicos do último século. Enquanto no século XX testemunhámos a Primeira e Segunda Guerra Mundial, a Gripe Espanhola e a Grande Depressão, o século XXI vivenciou a Grande Recessão, a pandemia de COVID-19, uma China autoritária e a invasão bárbara de Putin na Ucrânia. Assim, Wolf deixa o alerta: “When we look closely at what is happening in our economies and our policies, we must recognize the need for substantial change if core Western values of freedom, democracy, and the Enlightenment are to survive“. A mensagem de Wolf é clara: para termos sociedades prósperas, o capitalismo e a democracia devem viver em perfeita harmonia.
Embora uma harmonia perfeita seja o ideal que devemos perseguir, na realidade a relação entre o capitalismo e a democracia é tensa e repleta de desafios. No entanto, ambos os sistemas partilham um princípio fundamental: a igualdade de status. São, como Wolf descreve, “gémeos simbióticos”. Em democracia, todos têm o direito de expressar as suas preocupações e manifestar o que desejam mudar. Da mesma forma, no sistema de livre mercado, os indivíduos podem, em teoria, trocar bens e serviços como desejarem. A convergência do capitalismo e da democracia gera uma interação complexa entre as forças económicas e políticas. A sobrevivência deste “casamento” depende da separação entre o poder político e económico, e é aqui que Wolf acredita que algo falhou. A principal causa da crise do capitalismo democrático, na sua opinião, é o capitalismo político/capitalismo de compadrio (“crony capitalism”).
Num dos capítulos mais poderosos do livro, intitulado “The Rise of Rentier Capitalism“, Martin Wolf descreve como o sistema capitalista, antes produtivo e dinâmico, se tornou num capitalismo de compadrio. Para Wolf, há duas maneiras pelas quais o equilíbrio entre poder político e económico pode ser desfeito: quando o estado assume o controlo da economia ou quando os capitalistas assumem o controlo do estado. Para garantir que o casamento entre o capitalismo e democracia é bem-sucedido, devemos encontrar o que Acemoglu e Robinson chamam “corredor estreito” (“Narrow corridor”) – um equilíbrio delicado que permite tanto a autonomia do estado e da sociedade, isto é, entre a autoridade necessária para fornecer bens públicos e a aplicação da lei, enquanto também evita o excesso de poder que leva ao autoritarismo. Martin Wolf argumenta que nos estamos a afastar do “corredor estreito” em direção a uma plutocracia, à medida que as barreiras que separam poder e riqueza são cada vez menores, com os capitalistas assumindo o controlo do aparelho estatal. Wolf mostra como autores desde a Grécia Antiga alertaram sobre as consequências de uma democracia disfuncional. Platão, por exemplo, acreditava que à medida que as elites políticas e económicas se tornam mais interligadas e distantes do cidadão comum, a sociedade começa a procurar um “protetor” contra os mais ricos e poderosos. Para Platão, a insegurança em relação ao futuro, o medo e o ressentimento poderiam levar à tirania. É notável como essa descrição permanece ainda relevante. Movimentos e líderes populistas em todo o mundo têm usado esse ressentimento como combustível. Apresentam-se como “contra” a elite corrupta e como protetores do povo. No entanto, como Wolf observa corretamente, esses líderes são eles próprios parte de uma elite, levando ao que ele denomina de “pluto-populismo”.
Infelizmente, embora Martin Wolf identifique corretamente o capitalismo de compadrio e a desigualdade que gera como a causa principal da insatisfação com o capitalismo democrático, ele falha em abordar corretamente o que origina este sistema de capitalismo político. Na verdade, a análise de Martin Wolf do problema é limitada à captura do estado pelas forças de mercado. Em lugar de enquadrar o problema como originado por políticos bem-intencionados ou ingénuos sendo corrompidos por “capitalistas gananciosos”, é vital reconhecer a fusão de interesses entre os dois grupos que permite que estes moldem as “regras do jogo” para benefício próprio. A identificação correta do problema é fundamental uma vez que desencoraja a busca de mais intervenção governamental como uma maneira de corrigir o problema. Afinal, se tanto o estado quanto os empresários são responsáveis por esse sistema de compadrio, qual a razão para acreditar que mais intervenção estatal será a cura?
Além disso, embora Wolf reconheça a importância de construir as instituições de modo a impedir que certos indivíduos possam destruir o sistema democrático em que vivemos, o autor dá demasiada ênfase à moralidade dos indivíduos: “it depends ultimately on truthfulness and trustworthiness in those in positions of responsibility“. Embora seja verdade que considerações morais e éticas podem influenciar o comportamento individual, questões estruturais como o capitalismo de compadrio não podem ser totalmente explicadas apontando para os traços de personalidade dos agentes económicos ou políticos em particular. Ao enfatizar as características individuais, Wolf acaba por retirar algum foco da necessidade de reformas institucionais para conter esta interligação entre elite política e económica. Assim, é importante lembrar o conselho de David Hume sobre como construir instituições adequadas: “Political writers have established it as a maxim, that, in contriving any system of government, and fixing the several checks and controls of the constitution, every man ought to be supposed a knave, and to have no other end, in all his actions, than private interest. By this interest, we must govern him, and, by means of it, make him, notwithstanding his insatiable avarice and ambition, co-operate to public good. Without this, say they, we shall in vain boast of the advantages of any constitution, and shall find, in the end, that we have no security for our liberties or possessions, except the good-will of our rulers; that is, we shall have no security at ll.”
Em geral, o livro tem o mérito de identificar corretamente o capitalismo político como a causa da insatisfação atual com o “capitalismo democrático”, embora não aponte corretamente a origem desse mesmo capitalismo de compadrio e, por consequência, proponha soluções que possam agravar o problema. Dado o cenário sombrio descrito por Martin Wolf ao longo do livro, não é surpresa que ele se encontre ” doubting whether the U.S. will be a functioning democracy by the end of the decade“. Talvez o tom seja demasiado pessimista, mas Wolf está correto quando afirma que as nossas democracias liberais “já viveram melhores dias”. Para todos aqueles que estejam preocupados com o estado das nossas democracias, este é um livro obrigatório. Vivemos tempos difíceis em que tanto as nossas economias quanto a ordem geopolítica são instáveis. O caminho a seguir não é o do nacionalismo, tribalismo e protecionismo. As maravilhas que alcançámos como sociedade são o resultado de mercados prósperos e de democracias pluralistas que vivem num “casamento feliz e respeitoso”. Mas não devemos ter isso como garantido, como este livro o demonstra. O capitalismo de compadrio é, de facto, uma ameaça ao nosso sistema económico e político. Apesar do seu pessimismo, o livro de Wolf é também uma mensagem de esperança. Na dedicatória do livro aos seus netos, Wolf escreve: “Que a geração deles faça um trabalho melhor do que a minha fez.” Essa geração é a nossa. O momento é agora. Que possamos estar à altura do desafio.