Carlos Moedas recebeu na segunda-feira o “campeão de Lisboa”, o Benfica, com uma belíssima prosa. No decorrer do discurso, em “15 minutos à Benfica”, o Presidente da Câmara elevou o desporto à sua mais natural condição, colocando-o no seu devido lugar – o centro – que é coisa que muitos políticos não fazem questão de fazer. Por isso, ter, à frente da CML, uma pessoa que sabe (e diz) que o desporto é uma peça basilar para o desenvolvimento da sociedade é, não apenas uma urgência moderna ou uma declaração amistosa e bonita para agradar o povo, mas acima de tudo uma novidade fundamental no desenho de um país e de uma cidade humanista, plural e verdadeiramente livre.

O discurso é bom sob vários ângulos. Os clássicos aristotélicos não foram esquecidos. Mas foi muito mais do que isso. Desde o entusiasmo a que Moedas não fugiu com receio da reação clubística dos rivais, até à bravura com que se atirou de caras à expressão “hoje a cidade é Benfica”. Quando criticamos, e bem, a promiscuidade entre o futebol e a política, esquecemo-nos de que é possível fazer política comprometida, mas independente, como ficou demonstrado por este discurso.

Após as habituais saudações protocolares, disse imediatamente ao que vinha: “Ninguém é campeão sozinho. Toda a glória dos vossos feitos só é possível porque os outros clubes também deram tudo, lutaram, sofreram, deram o corpo à rivalidade saudável, que faz a magia do desporto. Por isso quero saudar também todos os outros clubes de Lisboa”. Como é evidente, Carlos Moedas reconhece que a rivalidade na maior parte das vezes não é digna, antes pelo contrário – o futebol português emana perversão –, e por isso se ouviram assobios dos adeptos quando foram saudados o Sporting e os outros clubes. E aqui começou a mensagem do Presidente da Câmara. Falando sempre do desporto como forma de o Homem se engrandecer, nunca se esqueceu de alertar para os perigos de não se levar isto a sério. E para bom entendedor, meia palavra basta. Moedas não estava apenas a fazer um discurso romântico. Estava também a pedir um esforço honrado aos dirigentes, treinadores, jogadores, árbitros e adeptos.

O segundo passo do discurso foi o elogio a Rui Costa, o “Rui”. Fê-lo com a convicção necessária. Devo dizer que conheço pessoalmente o presidente do Benfica. Conheço-o e gosto dele. Até revelo que me ajudou num momento importante da minha vida profissional, o qual estou muito grato. É verdade que o critiquei algumas vezes, principalmente por considerar que não se demarcou com firmeza da direção anterior. Faltou-lhe tenacidade. Mas Moedas, sabendo o que está em causa – os tempos são de afirmações claras, mas conciliadoras e humildes –, ergueu com palavras meia estátua a Rui Costa, pedindo que o próprio se digne a construir o resto, e focou-se no essencial: relembrou o percurso do ex-jogador, cuja história é inegável, e, desta forma, traçou-lhe indiretamente o percurso enquanto dirigente. Tal como antes, não foi apenas um elogio, foi também uma chamada de atenção e responsabilidade para o que Rui Costa tem de fazer enquanto presidente: honrar o seu passado, mantendo-se firme nas suas convicções, e não entrar no jogo de alguns colegas ou antecessores.

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Outro dos aspetos relevantes do discurso foi a referência a Schmidt. Não debateu táticas nem estratégias, expressou com muita clareza que antes do treinador está o homem e, como lembrava o professor Manuel Sérgio, “É o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser”. Por essa razão, a família de Schmidt foi assunto, o que significa que foi um detalhe que não passou despercebido aos olhos do Presidente da Câmara. Quando Schmidt festejou com a família, deu um sinal, o sinal de que todos pertencemos a um lugar. E Moedas reparou nele, porque também o vive na pele e sabe que, como o próprio referiu, “que é tudo uma questão de dar tudo”. E não é dar tudo num esforço puramente individual e egoísta dentro de campo, como alguns vícios modernos nos instigam a fazer. É, principalmente, uma entrega plena – inteira e humana – a uma missão muito maior do que o próprio ser humano, com metas inacessíveis à razão. O desporto é assim. A política também. É uma espécie de sacerdócio que traz à tona a pessoa tal como ela é.

Depois, falou para os mais novos e pediu aos mais velhos que fossem exemplos, porque os mais jovens olham para os jogadores e veem neles figuras que devem imitar, não apenas os penteados, mas a forma de ver a vida. Não foi por acaso que se dirigiu a eles. Um homem que viveu na Europa mais desenvolvida sabe que uma parte substancial do desenvolvimento dos homens e das mulheres do futuro não passa apenas por teoremas de Pitágoras, divisões de orações ou macroeconomia. O desenvolvimento de todos aqueles miúdos sentados de cócoras terá também lugar no desporto. Na liberdade, no sentido do outro, de beleza e justiça, no sentimento de pertença, no desenvolvimento de uma personalidade firme, com convicções, sem medos, que só o desporto pode dar com tanta clareza.

Carlos Moedas, falando para os jogadores, não agradeceu o campeonato conquistado. Agradeceu o facto de uma equipa vencedora nos lembrar todos os dias de que a vida acarreta muito empenho, muito esforço, muita dedicação. Agradeceu a “uma equipa que não perdeu a esperança de que todos precisamos”. Não basta aquele sprint final, não basta o golo nem a finta, nem o abraço a um colega no fim do jogo. Mas dessas insuficiências, que são como espelhos da nossa própria fragilidade, nasce um desejo imenso de concretizar o que há de verdadeiramente grande no nosso coração. Desejo esse que só se alcança de mãos dadas.

Cito a parte final do discurso porque não sei dizer melhor, onde Moedas referiu uma qualidade diferente de cada jogador, um por um, reiterando a importância de quebrarmos as fronteiras que existem entre nós. O Presidente da Câmara resumiu com inteligência a missão do desporto, que é, no fundo, a missão da vida. E foi novamente um alerta. Um alerta urgente para os populismos, para uma esquerda e direita (ou Benfica, Sporting e Porto) que não sabem dialogar porque se consideram moralmente superiores, para a intolerância, para o debate público e para uma sociedade demasiado polarizada, surda e tantas vezes cega: “A vossa equipa é onde cada jogador confia no outro como irmão, onde colocamos de lado as nossas diferenças para dar tudo. Eu diria mesmo que a vossa força é a diferença. E essa é uma mensagem importante para os dias que correm”.

O discurso de Moedas foi muito bom. E foi muito bom porque foi corajoso. Nos dias que correm, é urgente o aparecimento de exemplos como este, de pessoas que se atiram com coragem para a vida, como um verdadeiro desportista aprende a fazer.