Tem-se dito que o ateísmo e o indiferentismo religioso têm ganho lugar no mundo. Não estou certo. Pelo menos, a julgar pelo argumentário de quem defende a existência de reparações históricas.

Em traços gerais, os cristãos acreditam que todos os seres humanos estão “infetados” por algo chamado pecado original e que podem “interceder” por aqueles que já morreram. Quem defende as reparações históricas, acredita que o “homem branco” e o “ocidente” possuem uma doença congênita mais letal e que, ao entregar um objeto pilhado no séc. XVI ao lugar de origem, se está a redimir à brutalidade que vários povos sofreram há cinco séculos atrás.

Depois de terem alertado, para o facto de o paraíso dos grandes gestores já não se chamar “céu”, mas “C.E.O.”, eis que surge, em nossos dias, uma nova forma de escatologia: a ideia de que estamos tão unidos a “quem já lá está”, que vamos, no séc. XXI, fazer justiça e indemnizar o mal cometido. São novas formas de religiosidade e a mim sempre me ensinaram a não dizer mal dos colegas de trabalho. Eu é que, com muita pena, prefiro as convencionais.

No entanto, peço a vossa atenção para o seguinte. Escrevi “brutalidade” e “mal cometido” porque, embora, seja descrente nesta nova religião, continuo a achar que o colonialismo é errado. Algo parecido com o pessoal que não é cristão mas, ainda assim, não tem pejo em afirmar que Jesus “foi um tipo porreiro, que sabia umas coisas”.

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Mas esta nova religiosidade não tenta só imitar o cristianismo. Ela procura ir mais além. Há uns anos, os Gato Fedorento expuseram, num famoso sketch, a dissimulação de quem dizia, em relação ao aborto: “pode-se fazer, mas é proibido”. Ora, se há estudiosos que atribuem ao Cristianismo uma certa hipocrisia moral, no caso destas novas formas de religiosidade, nem chega bem a haver hipocrisia, na medida em que não se pode fazer grande coisa. É a evolução.

Se, por exemplo, desejo escrever um texto sobre a obra do autor colombiano Gabriel Garcia Márquez, usando autores europeus, sou acusado de eurocentrismo e de torturar a academia com o racionalismo ocidental. Se me tento redimir, escrevendo outro artigo sobre o mesmo autor, mas recorrendo a autores sul-americanos, encoro na pena de “apropriação cultural”. Se faço penitência e tento misturar as referências, considerando indiferente a sua origem, não respeito o tema porque, como “homem caucasiano”, não tenho “lugar de fala”. Ou seja, não há redenção possível. O que é trágico. Lá no fundo, isto é uma religião que promete a salvação à malta que viveu há cinco séculos atrás, mas condena ao inferno quem vive no tempo presente. Prioridades.

Ainda assim, como “cristão em potência”, tenho aprendido a valorizar coisas mais práticas. Mais temporais. Talvez porque tenho a sensação de que há muita eternidade que se joga no dia-a-dia. Nesta semana, por exemplo, estatísticas mostram que Portugal é o 5.º país da União Europeia com o salário médio mais baixo. E, no mês passado, um relatório publicado pelo Banco Mundial tornava claro que os 75 países mais vulneráveis do mundo enfrentam, pela primeira vez neste século, um aumento da disparidade de renda em relação às economias mais ricas.

Neste quadro, falar em reparações históricas é semelhante a propor homenagens póstumas. Todos sabemos que têm a sua graça, mas não mudam realmente nada. Servem para entreter, mas não repõem, em efetivo, o bem que se omitiu. No meio de tudo, só ajudam a promover a imagem pessoal dos promotores. É como as carpideiras. Não importa quem é o morto. O que interessa é chorar mais alto.