Exmº Senhor Presidente da Sociedade Nacional de Belas Artes (SNABA)

Acuso a recepção do convite para ser oradora no Simpósio Escultor João da Silva, organizado pela SNABA, em 9 de Outubro de 2021, cuja abertura será feita pelo Dr. José Sá Fernandes (que desde há 16 anos tem sido vereador do Ambiente, eleito pelo BE e pelo PS, da Câmara Municipal de Lisboa), e por dois outros artistas, além de V. Exª. No programa do simpósio anexo, inclui-se, de forma antecipada, já o meu nome entre os intervenientes, mas obviamente não posso aceitar, pelos fortes motivos que lembro de seguida.

1 Como é inclusivamente do conhecimento público, e pode com facilidade ser consultado até na internet, tenho demonstrado, desde há décadas e sobretudo desde 2004, o mais profundo desagrado pela forma como a SNABA tem tratado o valiosíssimo legado dos meus tios-avós a Pianista Maria do Pilar Sérgio da Silva (1880-1960, irmã da minha avó materna, Juliana Sérgio Pessoa) e o Mestre Escultor João da Silva (1880-1960). Estes meus tão estimados tios-avós, casados com separação de bens, pelos respectivos testamentos, ambos datados de 27 de Agosto de 1952, ofereceram à SNABA vários bens imóveis e móveis, de que se destaca o talvez único exemplar arquitectónico da casa-museu, de autoria de arquitectos franceses, composta por casa-atelier-galeria de exposições com amplo jardim da Rua Tenente Raul Cascais, nºs 11 e 11 A (esta era propriedade da minha tia, e situa-se no centro de Lisboa, próxima da Assembleia da República, entre a Rua da Escola Politécnica e a Rua de São Bento), o espólio do Escultor João da Silva, com cerca de cinquenta mil objectos, dos quais cerca de cinco mil novecentos e noventa e dois eram em Agosto de 2004 obras suas, e os direitos de autor das peças de sua autoria, sobretudo rentáveis nos casos das medalhas religiosas e civis, incluindo-se um prédio cujas rendas também são da SNABA.

Os doadores, evidentemente puseram condições nos seus testamentos, como a casa da Rua Tenente Raul Cascais passar a ter o nome do Escultor João da Silva, “ser franqueada ao público” “reunir … o maior número de obras possível além daquele que ali figura actualmente”, etc. Cumprindo escrupulosamnte a vontade dos testadores, a filha do Tio João da Silva, a quem eu considerava “querida prima” Gabriela Silva, depois de 1960 reuniu na casa-museu ainda muito mais objectos artísticos do seu pai, os quais trouxe até de Paris.

Todas as ofertas totalizaram muitas e muitas centenas de milhares de euros, mas a SNABA não tem sequer correspondido a esta imensa generosidade dos testadores, como resumidamente vou referir.

2 Este Escultor, Medalhista, Joalheiro, Ourives e Cinzelador, exímio nos trabalhos em bronze, mármore, porcelana, vidro, ouro, prata, etc., tem peças em espaços públicos, colecções públicas e privadas de vários países e fazia questão de para as suas obras recorrer aos melhores fundidores franceses, à fábrica de porcelana alemã Rosenthal, mas também à Vista Alegre e aos melhores especialistas portugueses e estrangeiros, designadamente em fundição, o que é importante referir, pelo cuidado que imprimia a todos os aspectos das suas obras, como adiante devo salientar. Há décadas, todos os dias nos podíamos deleitar com obras suas, quando utilizávamos as suas lindíssimas moedas de prata, pois a sua Arte é de uma “beleza intemporal”, como a venho caracterizando.

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Note-se que Mestre Escultor João da Silva já em 1900, com apenas 20 anos, obtivera um prémio na Exposição Universal de Paris, e outro em 1904, na Exposição Universal de Saint-Louis (USA), tendo obtido em 1906 o então maior galardão a que um artista podia aspirar, o “Prix de Rome”, enquanto aluno finalista primeiro classificado da Escola de Belas-Artes de Paris. Já antes, na Suíça, fora também o aluno número um da Escola de Artes Decorativas de Genebra.

Recusou João da Silva o sempre cobiçado e raro “Prix de Rome” apenas para não perder a nacionalidade portuguesa, o que mais devia comover Portugal.

3 Digo-o, não enquanto sobrinha, mas na minha qualidade de Museóloga (ex-directora por exemplo do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra), de Historiadora de Arte e ex-professora de História de Arte, convidada, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa, que a obra do Escultor João da Silva honraria qualquer grande museu do mundo.

Se o Mestre Escultor João da Silva tivesse aceite a nacionalidade francesa e tivesse construído o seu atelier principal em Paris (cidade onde também sempre teve atelier), a sua obra não só honraria o Museu d’ Orsay, como o seu atelier faria parte dos itinerários culturais da capital francesa.

Em Portugal, constato-o com profunda tristeza, à responsabilidade da herdeira, a SNABA, a casa-museu está há muito fechada e tem sido deixada degradar-se, e o espólio, que deveria aí estar mantido na totalidade para fruição pública, na maior parte terá desaparecido, salvo prova em contrário.

Foi na década de 1970 que, numa visita comigo à Casa-Museu, o notável Historiador de Arte José-Augusto França, além de muito ter gabado a preciosa colecção artística, terá sido pioneiro a destacar a enorme importância arquitectónica deste edifício modernista, de estilo Bauhaus, inspirado em ateliers parisienses, o qual considerou talvez exemplar único em Portugal.

4 De facto, a SNABA, apesar de dever a sua própria sobrevivência, em 1952, aos testamentos dos meus tios, e de com estes ter também financeiramente tanto lucrado, desde o falecimento do casal, em 1960, nunca mostrou qualquer interesse, nem pela Casa-Museu, não acedendo sequer aos numerosos convites da usufrutuária filha do artista (falecida em 2003) e, a pedido desta, também convites meus, para visitar a casa, nem mostrou qualquer interesse pelas valiosíssimas ofertas.

A SNABA, inclusivamente, de forma para mim surpreendente e inexplicável, nos processos, que já tarde, em Abril de 2004, a então Presidente Pintora Emília Nadal pôs em tribunal contra o sr. José Quintanilha Mantas, apenas requereu oitenta e cinco obras do Escultor João da Silva (e porque não as outras 5.907 que o sr. Mantas declarou em tribunal também aí existirem?), e tem deixado o interessante imóvel avançar para o actual estado de quase ruína, quando tanto o edifício, como o espólio, deviam ser classificados, como há décadas peço.

Consultei no Palácio de Justiça de Lisboa, e aconselho todas as pessoas a consultarem, para verificarem esta tragédia cultural e humana, os muitos volumes dos referidos processos judiciais, que duraram catorze anos, até 2018: Processo nº 2580/04.2 TVLSB/N da 10ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção e Processo nº 4878/04.0 TVLSB, da 4ª Vara Cível de Lisboa, 2ª Secção.

5 Com os únicos intuitos de defender as últimas vontades dos meus tios, e de proporcionar a fruição pública destas maravilhosas suas doações, tenho desde 1960 gasto horas e horas, sofrido imenso com o que se passa e tido bastantes despesas, sem jamais ter ganho um tostão, mas consola-me o dever cumprido, apesar da incomensurável frustração. Apenas menciono que em 2004, em Maio, prontifiquei-me a ir depor em tribunal, como testemunha; em Junho, morreu subitamente o meu marido, e, apesar de eu estar de rastos, logo em Agosto dirigi cartas sobre a Casa-Museu, à Academia Nacional de Belas-Artes e à SNABA e em 3 de Outubro enderecei à Presidente da SNABA uma carta, também com o assunto “Casa-Museu do Mestre Escultor João da Silva”, com 31 folhas, mais 66 folhas de 29 documentos anexos, a qual ficou sem resposta, o que motivou a minha apresentação de demissão da direcção da SNABA, mas de seguida pedi a várias pessoas para fazerem intervenções, e apresentei abundante documentação a várias entidades.

6 Sessenta anos depois da morte dos doadores, para finalmente os homenagear, a SNABA organizou, no Verão de 2020, quando Lisboa fica deserta, em simultâneo duas exposições, que evidentemente quase passaram despercebidas, apesar do aparato expositivo com que se encheu o espaço, com grandes painéis e onde faltaram imensos objectos originais oferecidos à SNABA (onde estarão?).

Sobre estas exposições, aqui apenas faço brevíssimos comentários: “O Legado e a Crise da SNABA de 1952” onde, de forma chocante, ficou “esquecida” a valiosíssima casa-museu, e onde a doadora, Maria do Pilar Sérgio da Silva, apenas aparece mencionada pelo nome próprio e portanto sem apelidos quase não é identificável, sendo ela também irmã do filósofo António Sérgio. Parece evidente que a SNABA deveria na exposição ter apresentado inclusivamente o compromisso de restauro e reabertura da casa-museu ao público, condição essencial para ter havido estas valiosas ofertas. Quanto à segunda mostra, “João da Silva: o Escultor Animalista” apenas se anota: 1) Sendo a obra de João da Silva tão diversificada, não seria natural apresentar uma panorâmica sobre ela, em vez de a restringir a uma particularidade, tanto mais que a totalidade da obra, em milhares de objectos, foi oferecida à SNABA?; 2) A que propósito se compensou a evidente falta de objectos da própria SNABA, com numerosas outras peças, umas emprestadas, e outras, num caso ainda mais espantoso, foram meras réplicas de peças em “impressão 3 D”, num trabalho de digitalização e impressão, num aí chamado “projecto específico de salvaguarda patrimonial do espólio do escultor João da Silva”. Ora, como acima neste texto de propósito recordei, mas é sobejamente conhecido, com o extremo cuidado que João da Silva punha nas suas peças, inclusivamente nos pormenores, estou certa que jamais o Mestre Escultor João da Silva permitiria estas réplicas em impressão 3 D das suas obras, que as desvirtuam e apoucam também o seu esmero profissional; 3) A que propósito a SNABA requer fundos nacionais, pagos por nós todos, para este inacreditável chamado “projecto específico de salvaguarda patrimonial do espólio do escultor João da Silva”, quando a única salvaguarda que os doadores certamente apreciariam seria a dos referidos cerca de 50 mil objectos do espólio, dentro da casa-museu, devidamente preservada e aberta ao público???!!!

7 Já em 7 de Outubro de 2009, escrevi: “Nos termos dos testamentos, além de outras condições, é intenção primordial juntar “o maior número de obras possível do Artista, o que é obrigação da SNABA acatar, mas o que evidentemente esta não fez, desrespeitando a vontade dos testadores.”

Evidentemente, 12 anos depois desta constatação e agora, 61 anos depois do falecimento de Pilar e de João da Silva, falecidos ambos em 1960, com intervalo de meses, mais se verifica que a SNABA não cumpriu as últimas vontades dos doadores. Por mim, arduamente me tenho esforçado para que se cumpram as vontades dos meus tão estimados Tios-Avós Pilar e João da Silva, com quem tanto convivi, lembrando sobretudo que aprendi a apreciar Arte no seu atelier.

8 Li, designadamente na wikipedia, sobre a Casa-Museu Escultor João da Silva, um rol de recentes simpáticas boas intenções da SNABA, mas será que se poderá acreditar nelas, tendo em atenção não já o passado, mas as sintetizadas estranhas encenações das referidas duas exposições que esta entidade realizou apenas há um ano, em 2020, e cujos textos a propósito vai agora apresentar em livro ?

Se essas boas intenções se concretizarem e se a SNABA demonstrar que segue novos caminhos, estarei disponível para convites seus, mas enquanto tal não acontecer, não posso em consciência agora aceitar o convite.

9 Portugal vai continuar a permitir mais este triplo grave atentado ao Património Cultural, que tem deixado arruinar, no coração da capital, um importante imóvel, impedido de nessa casa-museu se mostrar ao público um valioso espólio, de autoria do notável Escultor João da Silva, digno dos melhores museus do mundo, mas aqui esquecido e apoucado? Esperemos novos tempos, melhores tempos.

Subscrevo-me, atentamente

Matilde Sousa Franco, que também assina, Matilde Pessoa Figueiredo de Sousa Franco

Sócia de Academia Portuguesa da História – de Mérito, Academia Nacional de Belas-Artes, Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa; sobrinha-neta dos doadores