18 de março de 2020. É decretado o estado de emergência por situação de calamidade pública ocasionada pela doença Covid-19 em Portugal. Decreta-se o confinamento geral, o país (praticamente) para, a população é confinada às suas habitações. O sentimento generalizado é de medo, medo do vírus desconhecido, do que há-de estar para vir. Ninguém estava preparado para uma pandemia.
Na comunicação social recorre-se à expressão “linha da frente”. Nesta linha fictícia encontra-se um segmento de trabalhadores, no qual se destacam os profissionais de saúde e dos serviços essenciais, de cujos serviços o país não pode prescindir. A estes é-lhes pedido que combatam um inimigo invisível, que deem o corpo às balas, mesmo sem colete sanitário à prova de vírus, enquanto a população é remetida ao confinamento em suas casas.
Nos hospitais e centros de saúde tenta-se fazer omeletes sem ovos. Falta material de proteção individual e de desinfeção, o que não trava médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de ação médica, que todos os dias, colocando a sua própria segurança em risco, prestam apoio aos mais vulneráveis. Os hospitais reorganizam-se e os serviços mobilizam-se no combate a este vírus desconhecido.
Na comunicação social banaliza-se a expressão “linha da frente”. É apelado ao sentido de missão dos médicos e dos profissionais de saúde. Batem-se palmas às 22h00. E o país parou. Durante dois meses, com revogação consecutiva de vários estados de emergência.
Nos hospitais e centros de saúde, os médicos internos vêm os seus planos de formação suspensos. São cancelados estágios, adiados para tempos menos pandémicos. Todos os esforços estão centrados no combate à Covid. Deixamos de ver família e amigos para minimizar contactos, fazemos turnos e horas extraordinárias por amor à camisola, imbuídos do espírito de missão que tanto convém à saúde (literal e financeira) do país.
O ano de 2020 assim vai passando, quase retomando a normalidade (a “nova normalidade”) nos meses do verão, porque o clima e a Nossa Senhora de Fátima gostam de Portugal. Para o resto da população, pelo menos. Muitos de nós viram as férias canceladas, por extrema necessidade dos serviços, eternamente adiadas para tempos menos pandémicos. A vida em geral é adiada porque se vivem tempos extraordinários.
Para surpresa de ninguém, eis que surge a segunda vaga de Covid no final do ano. Mais virulenta, mais contagiosa. Os hospitais reorganizam-se novamente. Duplica-se a capacidade dos internamentos e das vagas dos cuidados intensivos. Os recursos humanos, porém, são os mesmos.
Aos médicos mais novos, menos vulneráveis, menos suscetíveis à doença, pede-se mais um esforço extra por amor à profissão. Pelo sentido de missão. Seguem-se mais turnos e horas extraordinárias, mais fins de semana a seguir doentes Covid e respetivos contactos, atingimos os 13 mil novos casos de infeção diários, com vários dias consecutivos acima dos 10 mil novos casos até ser decretado novo confinamento geral.
Não são tempos ordinários os que vivemos.
Sou médica e a todos estes chamamentos, senhor Primeiro-Ministro, a todos estes apelos de responsabilidade coletiva eu respondi prontamente, sem hesitar.
Já não sei o que é um jantar com amigos, já há quase um ano que não abraço os meus pais. Não festejei o meu aniversário no dia em que foi revogado o estado de emergência, privada do contacto com os que me são mais queridos para não os expôr ao risco que a minha profissão acarreta.
Vi os meus pedidos de férias serem consecutivamente recusados. Tive de cancelar estágios importantes para a minha formação. Deixei a minha vida pessoal em suspenso para ter total disponibilidade para o Serviço Nacional de Saúde, substituí colegas em isolamentos profiláticos, infetados com Covid, de baixa familiar para cuidar de filhos menores.
Tudo isto fiz sem receber outra gratificação para além do sentido de dever cumprido, da satisfação pessoal de contribuir para a sociedade através do meu trabalho.
Acontece, senhor Primeiro-Ministro, que à data do início da pandemia me encontrava no último ano do internato médico. Considerado o ano mais exigente, por ter uma série de requisitos curriculares, de subespecialização, a última etapa da formação de um médico interno. Ano em que é suposto concentrarmos os nossos esforços na atividade científica, paralelamente ao trabalho assistencial.
Mas em 2020 não houve vida para além da Covid. Como pode depreender, o que tinha planeado em nada se aproximou do ano que vivemos, que nem a mente mais sórdida poderia antever.
Nesse sentido, a Comissão Nacional de Médicos Internos propôs a recalendarização da época de exames da avaliação final do Internato Médico, de forma a tentar colmatar o prejuízo que adveio da pandemia Covid na formação dos médicos que em 2020 se encontravam no último ano de internato, logo, sem mais tempo para repor esse prejuízo.
Também a Ordem dos Médicos fez o mesmo apelo.
Qual não foi o meu espanto – e o de cerca de dois mil colegas médicos que se encontram na mesma situação – quando, em janeiro deste ano, e ignorando o nosso pedido que considerávamos razoável, é publicada em Diário da República a data oficial da época de avaliação normal, em março e abril, na data habitual em que costuma ocorrer, nos trâmites normais, como se tivéssemos vivido um ano normal.
O senhor PM certamente já sabe, mas para os mais leigos eu explico: o internato médico – formação que todos os médicos têm de cumprir para se tornarem especialistas numa área médica ou cirúrgica – culmina com a avaliação final, realizada a nível nacional na mesma data e que compreende uma série de exames e avaliação curricular, realizando-se habitualmente na chamada época normal nos meses de fevereiro a abril. Em condições normais é assim que ocorre.
Mas estes não são tempos ordinários nem as condições são normais ou mesmo justas.
Pusemos os nossos planos de formação em suspenso para corresponder ao apelo do país e estarmos na tão propalada “linha da frente”. Permita-me que lhe expresse por que razão abomino esta expressão. Enclausura em si uma série de pressupostos errados sobre a forma como os profissionais de saúde são percecionados. Ao relegá-los ao estatuto de heróis, de sobre-humanos que colocam as necessidades dos outros consecutivamente à frente das suas, que ultrapassam os seus medos e negam o próprio instinto de auto-preservação em prol da comunidade, convenientemente se demite da obrigação de os tratar como aos demais cidadãos.
Somos humanos como os outros, também sentimos fadiga, por vezes desmoralizamos, temos necessidade de descanso.
E também temos direito a condições de equidade, se me permite.
Compreendo que o último exame que fez já tenha sido há algum tempo, mas ainda assim há-de concordar comigo que, para se ser bem sucedido, a receita é antiga e universal: é preciso tempo para a preparação, é preciso tempo para estudar.
Tempo esse, do qual abdicámos no último ano, respondendo ao apelo nacional. É que, caso esteja esquecido, senhor PM, estes “heróis” sem capa nem superpoderes, no início da sua carreira, são na verdade uma espécie de trabalhadores-estudantes.
É-nos exigida uma série de requisitos durante o internato médico ao nível científico que passam pela produção de artigos científicos, de trabalhos de investigação, para além do trabalho assistencial de 40 horas semanais, excluindo as horas extraordinárias e urgências.
E a única coisa que nós lhe pedimos foi que nos concedesse precisamente isso, tempo. Uma reivindicação justa, a reposição do tempo que nos foi retirado do internato durante a pandemia da Covid, para que possamos fazer a avaliação final em tempos mais calmos, à luz do que aconteceu, aliás, no ano passado com os médicos internos submetidos a exame em julho de 2020, sem que o seu tempo de estudo tenha sido prejudicado como foi no nosso caso.
Relembro-lhe que a nota final do internato é definitiva, não havendo possibilidade de recurso ou repetição de provas, e será essa que prevalecerá para o resto das nossas carreiras.
Ao negar-nos a possibilidade de uma compensação temporal dos meses de estudo para o exame está a relegar-nos para uma situação de extrema desigualdade perante todos os nossos colegas, mais velhos e mais novos, com os quais concorreremos em concursos públicos e cujas condições de preparação foram tão diferentes das nossas.
Queremos continuar a contribuir para a construção de um SNS de qualidade, mas para isso é necessário que não nos prive desta etapa de preparação em condições de equidade.
Contribuímos no combate de uma pandemia e esta é a mensagem que nos transmite? É este o seu agradecimento pelo nosso trabalho?
Tempos extraordinários requerem medidas extraordinárias, não concorda? Pelo menos foi isso que foi “martelado” aos nossos ouvidos desde o início da pandemia.
Tempo, só precisamos de mais tempo.
A Champions pode guardá-la para si, obrigada.