7 de Abril de 2020
Faz bastante tempo que não lhe escrevo uma carta, destas com envelope e selo de correio. O Hans lá me vai enviando um postalzinho de vez em quando, um modelo de correspondência em extinção, mas que, tal como as cartas, sabe bem ver chegar pelo carteiro.
Aqui do Porto onde fiquei aparcado, não tenho vontade nenhuma de insistir nesta hecatombe da jaula global em que estamos todos encerrados. Sim, já sei que você menos, aí a voar de continente em continente no seu jatinho, a apagar os fogos desse seu império…
Devo-lhe dizer que acho admirável a verborreia monotemática de todas as televisões, de todos os jornais, em todas as línguas, uma criatividade sem fim de palavras a falarem apenas de um assunto.
E confesso-lhe que não vejo mais de 45 minutos de TV (você, apesar de teutónico, chama-lhe silly box…) por dia. A disciplina que pratico para me poupar ao mono e viral assunto, e que lhe aconselho, é simples: quando já estiver no remanso da sua casa em Krefeld (ou no hotel, ou no seu avião onde se calhar também consegue) vá ver o Richard Quest no “Quest Means Business” na CNN, que em geral passa às 20 horas, hora de Londres. O homem é um génio, e é o único que nesse Canal não fala para manter o Trump em constante assassinato. Passe à frente a publicidade e o que não lhe interesse, e não perca as intervenções dos entrevistados que raramente duram mais de dois/três minutos. E em geral são líderes empresariais de grande envergadura como o Hans que, ao contrário dos políticos, falam verdade… Em pouco tempo, fica-se com um bom pano de fundo deste mundo onde nos temos que governar. Aparte isso passo a correr pela lusitana SIC das 8, e às 22 não perco a BBC Scotland, claro.
O opinianómetro televivisivo cá da Lusitânia está no auge, umas vezes na variedade mentirómetro, outras no fantasiómetro. O pequenino, que aos Domingos fala bem e nem sempre barato, como não quer pisar o risco, e sempre a procurar estar de bem com gregos e troianos, perdeu interesse. O Portas acho-o Vintage. E o Júdice vai em crescendo. E deu-me outra vez para ouvir rádio, dando preferência à BBC Radio 4, sempre sóbria e objectiva, e à Rádio Observador, que está em ponto de rebuçado. Ouço na net…
Estou muito preocupado com o Boris Johnson, que sei ser seu amigo. É um líder de qualidade, que não titubeia, e faz. Espero bem que não lhe aconteça alguma fatalidade. Com esse desastre, os farrapos que restam numa União Europeia que navega sem norte, mais o Trump, mais o Brexit, mais a Merkel em fim de festa, mais o Orban feito um ditador democrata, e o Costa em bicos de pés, olhe só o que nós temos pela frente…
Tinha bilhetes marcados e pagos pela EasyJet para Edinburgo, e depois ia à terra em St Andrews passar a Páscoa, na minha casa onde não desfruto da vista do mar como aqui, mas em compensação tenho, como sabe bem pelas tantas vezes que me tem visitado, uma vista soberba sobre o green do 17 do Old Course e sobre a nossa Club House do R&A, agora encerrado. Foram cancelados os vôos, claro, daí eu estar aqui no querido Porto. Aqueles aviões, além de serem tudo menos low cost (os extras um dia destes vão incluir casa de banho de acesso com moeda…) são como o antigo vagon Jota em que a CP, na minha infância, transportava gado e carga. Mas como não há outros vôos directos de Lisboa para lá (nem do Porto, claro!), há muito que não tenho alternativa. E agora, dado que os aviões pararam todos, oferecem outras viagens para quando me fizer jeito, em troca destes bilhetes não utilizados. Sobre reembolsos, nicles! Mas enquanto há vida há esperança em recuperar aqueles €.
Ouviu na net o fórum organizado pela Gulbenkian a respeito do CV19? Salvo a apresentação pela Presidente que foi algo penosa, estive a ouvir até tarde e em diferido no YouTube, e achei a maioria das intervenções brilhante. E não meteram política! Bem, a Gulbenkian, apesar dos solavancos que me contam alguns amigos, continua com muito prestígio… Tenho curiosidade em conhecer a sua opinião sobre esse fórum, que ainda está a tempo de ver, pois ficou online.
Veja lá se nessa perigosa turbulência de vida, em que nem o CV19 o faz parar, se mascara e desinfecta como deve ser: isto não está para brincadeiras!
Já agora, que ando com tempo livre para ler, fico com curiosidade pelos seus gostos literários. Diga-me lá caro amigo Hans: qual o seu livro e escritor favoritos, e que livros anda a ler? Mas o que devia era não largar o seu livro de orações, e implorar misericórdia ante esta hecatombe que estamos a passar!
A próxima carta vai ser, se Deus quiser, de St Andrews. Mas enquanto fechado aqui na Foz do Douro, e olhando do meu terraço para este belíssimo e agitado Atlântico, envio-lhe um afectuoso e longínquo abraço.
9 de Abril de 2020
Fico surpreendido como a sua carta, que tanto me alegrou, chegou aqui em dois dias! Muito obrigado. Tem razão, isto de nos correspondermos em papel com envelopes e selos é “outra loiça” (boa expressão lusitana!)
No meio do torvelinho que o meu Grupo Woschiems está a atravessar, consigo passar aqui em casa, em Krefeld, a Semana Santa. Tenho pouco tempo disponível, pois nem chegam as vídeo-reuniões para acudir a tantos fogos. O que vale é o Learjet, agora em permanente uso, dado que as linhas aéreas regulares que utilizo sempre que posso estão todas em terra. Como não há tráfego aéreo em Heathrow, Kennedy, Frankfurt, Los Angeles e mesmo Dallas, o avião não tem de dar mil voltas para aterrar, coisa habitual, pois tratando-se de jacto privado, às vezes as torres de controle deixam-nos para trás.
O William não quer falar do mono-assunto, mas tenho muito orgulho em lhe dizer que as nossas empresas do ramo farmacêutico, que estão em Basileia, decidiram também apoiar “One World: Together at Home”, um espectáculo que deve ser fabuloso, e que vai para o ar no dia 18 de Abril às 8 da tarde, hora de Nova York, para levantar fundos para projectos de investigação de combate ao vírus, e fazer uma homenagem aos milhões de trabalhadores da área da saúde que em todo o mundo se encontram na linha da frente do combate à CV19. Além da ABC, NBC, e CBS, a Amazon Prime Video, a Apple, o Instagram e o YouTube vão fazer o streaming online e ao vivo. O espectáculo, animado pelo Jimmy Fallon, entre outros, vai apresentar a Lady Gaga, Elton John, Keith Urban, Andrea Bocelli, Lizza e Paul McCartney, e mais outros famosos de topo. Recordo ao William que aquele concerto de 1985 “Live Aid” de onde saiu o “We are the World”(escrito pelo Michael Jackson e o Lionel Ritchie e interpretado por eles com o Ray Charles, Diana Ross , Bruce Springsteen, Tina Turner e outros) que tanto você como eu sabemos trautear até hoje, rendeu, naquele tempo, US$75 milhões. Nessa altura ainda o meu grupo empresarial estava em gestação…
Sabe que, para já, decidi não investir no 5G na nossa empresa de telecomunicações. As teorias de que o CV19 foi muito causado por isso, até por que Wuhan é a “smart city” com mais concentração de empresas envolvidas na implementação do 5G. Acresce que, tal como a Huawei, correm com alguma consistência rumores de que o Estado Comunista chinês controla essas iniciativas com vista a criar brechas na segurança das potências rivais e de grupos empresariais globais como o meu. Si non e vero… Por enquanto, não nos atrevemos a avançar!
Sim, segui o seu conselho e ouvi/vi na net o fórum da Gulbenkian sobre o CV19. Quase todos foram muito bons, e quem mais brilhou foi o Poiares Maduro e o Durão Barroso, seus compatriotas. Não sei se seria da má ligação ou da fraca qualidade das câmara e microfones, mas fiquei com a impressão que a Presidente dominava mal o inglês e não estava preparada para aquela tarefa. Ainda está à frente da Gulbenkian? Aquilo tem trabalho de grande mérito, e a máquina tem resistido a tempestades várias, Got sei Dank! A programção musical é do melhor que há no mundo, mas nas vezes que vou a Lisboa e assisto a um concerto, nunca a vi lá.
Entre as muitas contrariedades com que me enfrento, uma é a anulação dos vários torneios de golf mais importantes da época dados os nossos patrocínios ao desporto. O adiamento do Masters de Augusta para Novembro, e do Open britânico para 2021 é também um desastre anímico para o nosso amigo Jack Bonner: com o envolvimento emocional e económico que tem no Masters e as ligações a Muirfield na sua Escócia, deve estar a sofrer com isso.
Ando enlouquecido com a bolsa de Nova York: num dia valho um bom dinheiro, no outro metade. A cotação da Woschiems parece um carrinho de montanha russa, mas não estou preocupado, pois os nossos sectores são essenciais nesta crise e estão num ritmo de produção que fumegam.
E vou corresponder à sua indiscreta curiosidade pelos meus gostos literários. Olhe, livros, o meu preferido é a Montanha Mágica do Thomas Mann, e o escritor é o Graham Greene, um católico converso, como eu. Estou a ler uma obra cuja recusa para publicar pela Hahette causou tal controvérsia que a Arcade Publishing, que decidiu e teve a coragem de editar, vendeu num par de dias dezenas de milhar de exemplares. Como se não fosse suficiente a fama do autor, vírus ou não vírus, pedofilia ou não pedilia! Trata-se de “A Propos of Nothing”, autobiografia do Woody Allen, que comprei na Amazon para o Kindle: fascinante, com toque de escândalo! Já agora, quando me escrever, gostava me respondesse a iguais indiscrições…. Sim, e tenho o livro de orações comigo: só espero que o William, apesar de ser Church of Scotland, vá aí a uma Igreja Católica na Foz do Douro implorar ao Altíssimo que ponha fim a este vírus demoníaco.
Acho que temos que continuar com esta nossa correspondência. Além de gostar muito de saber de si por escrito, isto acalma o stress que procuro disfarçar a todo o custo.
Mit herzlichen grüssen, ou melhor, com um caloroso abraço,
Palavras Cruzadas é o título de uma série de cartas íntimas trocadas entre dois amigos. Um é alemão (Hans Hoffmann), residente em Krefeld, perto de Dusseldorf, e outro escocês (William Archibald), residente em St Andrews, na Escócia, mas ambos com casa em Portugal, país que os apaixonou. A correspondência tende a revelar um Portugal e um mundo vistos por Hoffmann na perspectiva da floresta, mas mais como árvore nas cartas de Archibald. Misturam nessa correspondência acontecimentos políticos, sociais culturais e económicos tanto portugueses como internacionais, revelando o seu cosmopolitismo. Usam de ocasional ironia em factos por vezes semi-ficcionados.
Hans Hoffmann nasceu em Krefeld, na Alemanha, onde mantém a casa herdada de seus pais. O seu pai que era carpinteiro e combateu durante a segunda guerra, ficou sem um braço durante o cerco das tropas nazis a Stalingrado (S. Petersburgo), vivendo depois dificuldades financeiras que levaram o filho a auto-financiar os seus estudos trabalhando numa drogaria. Há muitos anos que possui um magnífico apartamento sobranceiro ao Rio Tejo na Calçada da Estrela, em Lisboa, que usa sempre que está em Portugal, seja em lazer, seja para se ocupar das importantes unidades fabris do seu grupo multinacional Woschiems aqui instaladas. O grupo empresarial, com actividades que vão da alta tecnologia aos produtos farmacêuticos, tem a sua sede em Krefeld e 111 fábricas espalhadas pelo mundo, nomeadamente em Silicon Valley, sendo duas em Portugal, uma perto da Pucariça, outra a uns quilómetros de Vila Franca das Naves.
Hoje, Hoffmann é um influente empresário global, arrojado e de rigor prussiano. Nasceu ainda na ressaca da bandeira Nazi, mas o Baader Mainhof, a cuja época pertence a sua passagem pela Universidade de Heidelberg, justifica ocasionais manifestações de um esquerdismo insólito, que também é influenciado pelo seu amigo George Soros, contrabalançado no entanto por um pragmatismo liberal que lhe dá um perfil que, na prática, o torna conservador.
Devido à sua afeição por Portugal e a uma crescente irritação com o a arrogância e o caos espanhol dos últimos anos, transferiu o centro das operações da Woschiems do sul da Europa para o nosso país, de Reus, na Catalunha, para a Pucariça.
Em Lisboa, e devido ao peso da sua multinacional, das suas relações com alguns influentes líderes políticos (especialmente em Berlim) e empresários mundiais, mantém relações de grande proximidade com S. Bento (ao lado de sua casa) e Belém. Além do seu êxito empresarial, o seu pendor mecenático na área da cultura, e o importante contributo para obras de solidariedade social, trazem-lhe grande proximidade ao poder político, financeiro, e empresarial, tanto nacional como global, onde goza de grande – mas discreto – prestígio.
A hierarquia da Igreja Católica portuguesa, por cuja obra social Hans se interessa e para a qual contribui generosamente, olha-o de soslaio, pois suspeita das suas raízes luteranas, apesar de católico converso.
Depois de um divórcio conturbado, num casamento de 17 anos e sem filhos, casou com uma conhecida e elegante opinion leader, antes consultora na área de gestão de fortunas, e agora com uma empresa de sucesso sediada em Nova York, especializada em imagem e comunicação.
Discreto e alheio aos luxos, delocava-se pelo mundo sempre que podia em linhas aéreas regulares, mas devido à massificação passou a usar com muita frequência o Learjet que a Woschiems lhe colocou à disposição.
Na sua valiosa coleção de arte conta com dois Vieira da Silva, um Malhoa, um Jorge Martins e um José de Guimarães, além de obras de pintores de grande nomeada como David Hockney, Andy Wharol, Lucian Freud, Katsushika Hokusai, entre outros. Nas horas vagas faz crítica literária ocasional para o Der Spiegel, Times Literary Suplement, e para o New Yorker. A biblioteca reúne obras nas cinco línguas que domina (alemão, inglês, francês, português — rola os r — e catalão). Nas prateleiras destinadas à língua portuguesa destacam-se Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Fernando Pessoa e, entre os contemporâneos, Mário Cláudio e Marcello Mathias. Grande apreciador de Vinho do Porto, a sua amizade com William Archibald, antigo proprietário de uma conhecida Quinta do Douro e de uma firma em Gaia produtora de vinhos de topo, foi crescendo. Essa cumplicidade acentuou-se graças à paixão dos dois não só por Portugal, mas também pelos grandes vinhos do Douro, e pelo golf, de que ambos são praticantes exímios.
William Archibald é escocês, mas nasceu no Porto. É descendente de um tal Peter Archibald que no século XVIII veio para o Cerro da Guarita, debruçado sobre o Rio Douro, no actual Conselho de S. João da Pesqueira, para caçar javalis. Peter foi dos primeiros a produzir e a exportar pata Inglaterra vinho fino fortalecido com álcool vínico, mais tarde celebrizado com a designação Vinho do Porto, com cuja produção e comércio, e durante 200 anos, os Archibald prosperaram no Douro, em Gaia e no Reino Unido. Nos finais do século XX, William Archibald, que dedicara a sua carreira ao sector financeiro e nunca vivera em Portugal, herdou a empresa. Esteve tentado a mudar-se para Portugal e mudar de vida. Mas a pressão das suas importantes responsabilidades em Nova York e Londres, por onde se dividia, levou-o a ceder a maioria do capital da empresa a um outro ramo da família, mantendo apenas uma posição acionista simbólica, que dá vida adicional às suas ligações ao Porto e ao Douro.
Tal historial levou-o a criar laços fortíssimos com Portugal, e em particular, com o Porto, onde adquiriu um andar sobre as ondas do Atlântico, na Foz do Douro, onde hoje passa temporadas. A sua residência é em St Andrews, na Escócia, onde tem uma bela casa sobranceira ao green do buraco 17 do Old Course, o mais afamado e antigo campo de golfe do mundo.
Estudou em Eton, e depois no Corpus Christi da Universidade de Cambridge, onde obteve um summa cum laude em História de Arte. Entre visitas a St Andrews, ao Porto e ao Douro, foi contratado para trabalhar num grande Banco em Nova York, tendo pouco depois sido nomeado Administrador de um banco subsidiário em Angola, dois anos antes da independência de 1975, altura em que foi para a City onde consolidou uma importante carreira no tempo do capitalismo popular de Margareth Thatcher, criando uma amizade próxima com Tony Blair e relações com o Partido Trabalhista. Representou os grandes bancos da City de Londres em muitas ocasiões, nomeadamente quando ocupou os Board do Commitee of Invisible Exports e o Conselho Superior do ECGD, Export Credits Garantee Department, um departamento do Governo britânico. Tendo decidido criar um Fundo de Investimento com um grupo de amigos, dez anos depois fez o floating da empresa, entretanto expandida para Hong Kong, New York e Singapura, tendo com isso amealhado significativa fortuna.
O custo do stress ininterrupto vivido durante trinta anos, levou-o a retirar-se para a sua casa em St Andrews, onde tinha sido admitido como sócio do R&A (Royal & Ancient Golf Club of St Andrews) alguns anos antes, graças ao seu baixo handicap, e ao seu carácter jovial e cosmopolita. No club, fez parte de diversos comités, tendo até ajudado a decidir, entre muitos outros distribuídos por clubes de golf do mundo inteiro, um apoio financeiro ao Oporto Golf Club, em Espinho. Devido aos cargos no R&A continua a viajar pelos cinco continentes representando o Club.
William Archibald, que frequenta a Church of Scotland, ficou viúvo bastante cedo, tendo uma filha que cursou Estudos Japoneses na Universidade de St Andrews, e três netos. Visita o Porto com frequência, onde entesoura a sua garrafeira de grandes Vinhos do Porto que mantém às devidas temperaturas, partilhando-a com Hans Hoffmann, outros amigos e famosos críticos de Vinhos portugueses e internacionais. Não dispensa o haggis, o prato nacional escocês, mas ficou fã da cozinha portuguesa, e ultimamente da arte culinária de Rui Paula.
A sua grande amizade com Hans Hoffmann, que conhecera num torneio de golf no famoso Dunes, na Carolina do Sul, propriedade do amigo comum Jack Bonner, consolidou-se por ocasião de um leilão de Portos Vintage realizado no Christies em 1990, em que Hans lhe levou a melhor num Noval Nacional de 1927, garrafa que arrematou por 1.500 libras, com que depois se foram deliciar no White’s, o gentleman’s club mais antigo e exclusivo de Londres, e de que ambos são sócios.