A lançadeira que percorre a trama num tear arrisca imagens imperceptíveis se não voltar ao início. Os gestos mais simples exigem regresso e revisitação porque, mesmo não modificando nada no objecto, a repetição altera algo no espírito que a experimenta.
Um dos mais belos poemas de amor do cânone ocidental, por exemplo, foi escrito duas vezes: composto pela primeira vez por Safo, por volta de 600 a.C., num dialeto grego, conhecemo-lo porque todo ele – o “Safo 31” por aparecer em trigésimo primeiro lugar no seu corpus – nos chegou através de uma citação num texto posterior, Do Sublime, da autoria de um tal Longino. Já na antiguidade, portanto, o poema se consagrara como expressão canónica do desejo.
Talvez esse poema, contudo, nos seja mais familiar naquela ‘tradução’ latina que um jovem Catulo, nascido por volta de 84 a.C. e desaparecido nem trinta anos depois, compôs – uma tradução tão marcada pela personalidade deste poeta romano que é, na verdade, mais uma interpretação do que uma tradução. Tal como o de Safo, o poema de Catulo não tem título – os classicistas referem-se-lhe simplesmente como “Catulo 51” – mas é difícil não imaginar que a intensidade do poema, comprimida em cinco elegantes estrofes de quatro versos, tornariam qualquer título supérfluo.
Sempre se considerou Catulo 51 um poema de amor, mas leio-o sobretudo como um poema sobre o olhar – essa matilha esfaimada que, pela manhã, largamos a degraus, janelas, íngremes subidas, jardins, e que regressa pela noitinha, uivando, enrolada em fios e prenhe do longínquo aroma a protecção, cuidado extremo, refúgio e amor. Simples?
Falar de simplicidade, ou simplesmente escrever sobre ela, é talvez o mais complexo dos desafios, pelo que é provável que, tentando desenredar os nós de todos estes fios feitos para convergir, me acabe eu também por enovelar.
Reconstruindo o percurso do lema até chegar ao grego antigo, o seu significado é paradoxalmente simples: deriva de πλόος (aplóos), “aquilo que não é duplo (nem triplo)”, com aquele alfa privativo à cabeça cuja função é precisamente privar, retirar graus de complexidade à realidade. Mais bela talvez seja ainda a origem, com raízes medievais, da nossa palavra portuguesa: do latim simplex, composto pelas raízes *sem– «um, um só» e *plec, do verbo plectere, «enlaçar» e plicare, «dobrar».
Talvez por esbarrar diariamente em tantas pessoas incómodas – que, todas dentes e certezas, se definem como simples envergando vestidos simples, reclamando-me respostas simples, e propondo-me soluções simples e amenidades ainda mais simples – é uma maravilha redescobrir o límpido sentido da simplicidade segundo os antigos. Eles recordam-nos antes de mais que simples não significa ser só, único, composto de uma única matéria ou de um único ingrediente; que somos humanos, feitos de emoções, e não receitas culinárias com escrupulosas instruções de quantidades e tempos combinados com parcimónia, bocejos, temor e calculismo.
Etimologicamente, simples não significa monocromático. Não é alguém perfeito na sua essência abstracta. Muito menos alguém que jamais experimentou o excruciante poder da contradição. Pelo contrário: a simplicidade reside na dignidade de saber enfrentar a infinidade de experiências que afectam a vida, sem nunca, porém, como nos recorda a etimologia, se dobrar, ceder ao medo de esquinas e passadeiras, ao pavor dos dias mais cinzentos.
Saber caminhar verticalmente pelas ruas do mundo, homens e mulheres simples intimamente enlaçados a si mesmos e ao mundo variado em que vivem, como a trança de uma menina que, esmerada, se dobra sobre os seus deveres; a quantidade precisa de sal que, consumindo-se, nos devolve generosamente o verdadeiro sabor do pão; os dedos, sábios e sujos, que se dobram para retirar a semente do alforge ou o caótico encanto da Mouraria quando a noite se aninha nos seus telhados.
Seres humanos, enfim, feitos de fraquezas, fragilidades, paixões, tristezas e, em última análise, júbilo, naquela capacidade de ordenadamente “dobrar” cada elemento do eu numa coerência interior, num sólido e despojado arranjo como barreira única e insubstituível à confusão que sempre espreita de fora.
Com todos os nossos lados cuidadosamente arrumados na gaveta, engomados e perfumados com lavanda, mantemo-nos bem “enlaçados” à vida, aos seus dilemas, desafios e exigências, sem medo – como diz o significado do verbo latino do qual deriva – de sermos novamente o nosso próprio lugar.
Importa, sobretudo, rejeitar vigorosamente aquela bizarra equação segundo a qual simples equivale a fácil – termo que, derivando do latim facere (“fazer”) significa banalmente “aquilo que não requer qualquer habilidade para ser feito”.
Nesta modernidade tão estranha, a facilidade tornou-se um valor absoluto e indiscutível, mas não há fundamento humano, muito menos etimológico, para esta embriaguez de facilidade colectiva em que vivemos imersos, para esta constante tendência para a subtracção, para o menos mau.
A vida, com as suas alegrias, as suas dores, conquistas, crescimentos e quedas, não é fácil. Nunca se pode facilitá-la, despachá-la, como se fosse um incómodo a resolver com brevidade. Pode, escuta, ser simples, se nos mantivermos próximos do verdadeiro sentido etimológico da simplicidade.
Os antigos gregos sempre souberam proteger-se da desorientação gerada pela eterna luta entre a complexidade exterior e a simplicidade interior graças a esta etimologia muito honesta: “vincular, ligar, enlaçar” na trama os fios com que a vida nos seduz.
Como se Péricles, Safo, Aristófanes, Sócrates, Catulo e todos os que cunharam a visão do mundo antigo tivessem intimamente concordado, com dois mil e quinhentos anos de antecedência, com William Wordsworth – o poeta romântico inglês com o mais belo apelido do mundo, literalmente “o valor das palavras” – que afirmava que tudo o que é necessário é viver com simplicidade sem virar nunca o rosto ao arrojo com que a vida nos surpreende: “o amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais”.
E se os sítios desafiarem os nossos regressos, consintamos que os nossos pés, como ágeis lançadeiras, voltem ainda mais ligeiramente ao início, ali onde a inocência e a doçura de outrora se reconstroem em fios de uma tapeçaria imprevista.