Anda por aí um quadro, que não conferi, que evidencia a quantidade impressionante de votos deitados a afogar por não terem servido para eleger qualquer deputado.

Mais: a concentração de votos em Lisboa permitiu que dois partidos, o Livre e o PAN, tivessem elegido, cada um, um deputado (no caso duas nulidades, uma palavrosa e outra nem isso, mas não é esse o ponto) quando o CDS, que não elegeu nenhum, ultrapassou um deles com 33.000 e o outro com 20.000 votos.

Ai que isto desequilibra o país a favor de Lisboa e Porto, desanima o eleitorado dos distritos em que o reduzido número de eleitos potenciais faz com que os pequenos partidos não elejam ninguém (e os votos respectivos não sirvam para nada) e favorece o voto útil, que é por definição a segunda escolha, falseando portanto a vontade do eleitorado.

Tudo verdade. Daí que nos vários projectos de revisão das leis eleitorais se contemple a solução para este problema (e outros, como o dos eleitos que dependem do líder que os escolheu e não dos eleitores, que não os conhecem), seja por um único círculo para todo o país (ao menos o continente), seja por um círculo extra que recupere os votos perdidos somando-os aos de cada partido e restaurando a verdadeira hierarquia partidária e a sua representação no Parlamento. Isto ou outras engenhosas combinações tributárias do “modelo” alemão, do britânico ou do da Cochinchina.

Céptico militante, e conservador (mais exactamente reacionário) por natureza, lembro que não há sistemas perfeitos; que naqueles países que têm a democracia no código genético (e que por isso nunca tiveram ditaduras), como os EUA ou o Reino Unido, os sistemas locais riem-se para a representatividade a tal ponto que normalmente há apenas dois ou três partidos, ajeitando-se as franjas extremistas dentro deles, em geral impotentes; e que a Constituição diz (e bem, na minha opinião) que os deputados representam o país e não a região pela qual foram eleitos, o que casaria mal com sistemas locais de winner takes all, para não falar da porta aberta ao tráfico de influências, num país em que ela faz parte dos costumes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O que o legislador abrilino quis facilitar foi a constituição de governos, escarmentado pela lembrança da balbúrdia da I República. E é isso que explica a distorção que o método de Hondt (consagrado legalmente, creio, apenas para o continente) implica, mormente se aplicado distrito a distrito e não no todo nacional.

De resto, rever as leis eleitorais só é possível com uma maioria de dois terços, o que quer dizer que, em princípio, o reforço da proporcionalidade só terá lugar se os beneficiários do sistema actual não forem excessivamente prejudicados. De modo que me lembrei de imaginar como teria ficado a Assembleia da República se, por exemplo, existisse apenas um círculo nacional, com os resultados de 30 de Janeiro passado, mas com o mesmo método. Para o efeito, arranjei na internet um simulador em Excel (acho que da Porto Editora), excluí das contas votos brancos e nulos, considerei 226 deputados e não 230 (faltam os eleitos pela diáspora) e, quanto à imputação de mandatos nas coligações nos Açores e Madeira, fiz uma repartição 80/20. Ficaria assim:

PS – 98
PSD – 68
Chega – 16
IL – 11
BE – 10
PCP – 10
CDS – 4
PAN – 3
Livre – 3
Outros – 3

O PS não teria a maioria absoluta, nem a conseguiria apenas com o BE, ou o PCP, nem muito menos com o PAN ou o Livre; e continuaria a haver uma maioria de esquerda, não de 130 contra 96 mas de 127 contra 99.

É provável que o nível de griteiro na Assembleia da República crescesse, e crescesse também o cambalacho para assegurar o apoio ao governo em troca de legislação para contentar as idiossincrasias dos pequenos partidos. Mal por mal, peço licença para achar que não ficamos pior: o PS dará fatalmente com os burros na água, seja sob a forma de falência seja sob a forma de estagnação; e parece evidente que pensar em revisões eleitorais só se for para retoques (como, por exemplo, eliminar o dia de reflexão, tal como pretende Marcelo – este tem sempre um sentido infalível para ligar importância a questões adjectivas, das substantivas nem cogita).

É assim que estamos. O método de Hondt tem os seus óbvios defeitos mas há um expediente para lhe limitar as distorções, e esse é o mecanismo das coligações pré-eleitorais. Sucede que, do lado esquerdo do espectro, coligações não vai haver: o PS faz parte do arco democrático, o PCP não, o Bloco tem dias, e as demências sortidas mais à esquerda podem servir para governar, mas apenas acampamentos de manifestantes.

Coligação ao centro, em si mesma a negação da alternância, mesmo com este PSD, nunca esteve no horizonte – só a pós-eleitoral; e imaginar que a direita desunida chega ao poder é razoável, mas não no sentido de supor que o PSD (um novo PSD, sem rioísmos), sozinho, o consiga.

É cedo para pensar em arranjos, o PS tem um futuro próximo risonho a torrar fundos europeus em fantasias e elefantes brancos, a reforçar a colonização do aparelho de Estado e a fazer reformas de faz-de-conta. Mas não é cedo para concluir que um futuro governo de direita ou será de coligação ou não será.

A direita fraccionou-se identitariamente: indignados para um lado, liberais para outro, social-democratas que vão muito à missa para um terceiro e gente que não sabe bem o que quer, mas sabe que esquerda nem mo-lo digas, no PSD são, que é o que vai renascer. E, ao fraccionar-se identitariamente, enfraqueceu.

Sucede que havia um partido que era tão pouco identitário que foi arrombado no transe de dar à luz outros dois, que não se podem ver. E, não contente com isso, entrou alegremente no campeonato do purismo: a direita fofa não nos convém, nós detemos a marca registada da democracia cristã, do personalismo e outras coisas respeitáveis e vetustas, e damo-nos ao luxo de ser agressivos em relação a quem não pertence à linha justa.

No campeonato do chega-pra-lá eleitoral a linha foi reduzida ao seu tamanho, e com ela o partido. Contraditoriamente, porque este era historicamente o que continha em si uma coligação permanente de diferenças. Mas como as coligações são o futuro: manda a lógica que não se decrete que o partido em questão morreu porque já não tem espaço.

Tem: há quem não queira importar o código penal americano, nem ache que a nação é um conceito obsoleto, nem entenda que o país é uma tabula rasa na qual se vão escrever os princípios da gestão de Singapura, nem acredite que copiando a legislação da Dinamarca ficamos todos louros. A direita céptica cabe lá toda, como a confessional (que gosta de fingir que o não é) e a desencantada com as trombetas dos novos partidos, que com o devido tempo terão os mesmos vícios dos velhos.

Esse partido é o CDS: sem deputados, sem ânimo e falido – o seu único capital é o das desavenças cediças, inúteis porque o catolicismo de que muitos se reclamam não é tão forte que os leve a rezar um acto de contrição, e a outros a uma atitude de perdão.

O que quer dizer que, desde que exista um tipo com vontade de atravessar o deserto, apoiá-lo é coisa de que nenhum mal virá, e talvez venha algum bem.

Em Dezembro de 2020 resolvi poupar o insignificante estipêndio que o partido custava e, farto de tolices, bazei, o que mereceu o inexistente eco que a minha inimportância justifica. Com o mesmo à-vontade regresso, logo a seguir ao Congresso, para o efeito de pagar quotas.

Quixotismo? Será. Cinismo é do que não se precisa.