O discurso de Luís Montenegro, no encerramento do Congresso do PSD, capturou a atenção geral dos partidos da oposição (em especial, do PS), dos comentadores televisivos e da comunicação social alinhada. Foi visível o desconforto do PS e da restante esquerda, bem como, em impressiva sintonia, da maioria dos comentadores. Ainda não estão recompostos: hoje, a ressaca ainda continua. Foi um momento revelador do estado em que anos de geringonça colocaram o “aparelho de opinião” no país. E confirmou o acerto de Montenegro nos temas e no tom que escolheu para o encerramento de um Congresso que já lhe correra muito bem.

Por todos, cito a “Anacrónica”, no Público de segunda-feira, de Ana Sá Lopes. É um texto de dez parágrafos, em que, partindo de um patamar sereno e racional, mergulha num abismo de angústia, apenas nove parágrafos depois. Diz, a abrir: “Fazer a bancada do Chega passar de 50 deputados para 5 é um objectivo patriótico, partilhado por todos aqueles que não se revêem nos discursos xenófobos do partido português irmão de Marine le Pen.” Já no fim, porém, remata: “A classe política tem de fazer uma reflexão profunda sobre as razões de o Chega ter atingido os 50 deputados. Saquear-lhes as bandeiras, contaminando o discurso social-democrata com a retórica da extrema-direita é uma estratégia que apavora.”  Eis como se assassina, de repente, o “objectivo patriótico”.

Pelo meio da crónica, nada que Montenegro tivesse dito ou feito. Apenas oito parágrafos do que os ingleses chamam de “self-talk”, com a interpretação da interpretação da interpretação, mais a suposição da suposição da suposição, com uma cotovelada na mesma onda, pelo meio, no trabalhista Keir Starmer, tudo sob a sintomática cor do título: “A vitória do Chega no Congresso do PSD”. É mentira! Todos viram. O Chega não venceu no Congresso do PSD. Nem de perto, nem de longe.

A abordagem confere com a linha oficial do PS – disse Pedro Nuno Santos: “o PSD não precisa de se coligar com o Chega, se já se coligou com as suas ideias”. Público, Expresso, SIC, CNN, para citar os mais notórios, afadigaram-se a multiplicar a narrativa. Ambiente de cerco.

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O primeiro-ministro escolheu sete áreas, onde anunciou medidas concretas: área metropolitana, água, violência doméstica, saúde, educação e ensino, imigração, segurança. Destes temas, os críticos elegeram três que fustigaram, no tom de Ana Sá Lopes: “o discurso anti-imigrante, o discurso reaccionário contra as “aulas de cidadania de facção”, o discurso securitário.” Violência doméstica? Abastecimento de medicamentos? Quem quer saber disso? Vamos aos três alvos.

“Discurso securitário”. Onde é que falar de segurança, em termos bem dirigidos e absolutamente corretos, é discurso securitário? Não há casos preocupantes de criminalidade violenta? Não é função do governo velar pela tranquilidade pública e pelo sentimento de segurança? Tudo feito sem alarmismo. E, se houvesse razões para alarme, haveria (como é óbvio) que responder em conformidade, com clareza e prontidão. Ou não é assim?

“Discurso anti-imigrante”. Quem ouviu algo disto? Não tem o governo português a obrigação perante os portugueses e perante os seus pares europeus de executar uma política de imigração bem administrada, que responda às necessidades sociais, que respeite as condições de vida dos imigrantes e que não crie situações de grave injustiça ou de tensão? A verdade é que quem desenvolveu não só um discurso, mas uma prática anti-imigrante foi o PS e a restante esquerda, através do desmantelamento do SEF e do legado de uma AIMA extremamente debilitada. É inacreditável como deixaram centenas de milhar de imigrantes indocumentados ou num quadro administrativo muito precário. O Estado socialista mostrou-se completamente incapaz de responder à simples administração dos papéis de milhares de imigrantes e, a seguir, de lhes assegurar condições dignas de habitação e de vida. Antes de criticarem os outros, os socialistas e os que alinham no seu discurso têm que mostrar vergonha pelo que fizeram, deixaram e camuflam.

Por último, o “discurso reaccionário contra as aulas de cidadania de facção”. Tinha de vir esta fúria indisfarçável. Escrevi muitas vezes sobre este tema. E há uma questão que nunca vi respondida. A nossa Constituição, como a generalidade das declarações internacionais de direitos humanos, consagra na educação, entre outros, dois princípios fundamentais: primeiro, a proibição de instrumentalizar a educação, aí intrometendo a ideologia; seguindo, o primado dos pais na educação dos filhos, com a consequente subsidiariedade do Estado. Isto é uma concepção bem estabelecida, de matriz fundamentalmente personalista. A Constituição é reacionária? A Constituição é extremista? Os únicos reaccionários e extremistas, nesta matéria, são os querem desconsiderar os direitos das famílias, em tudo as submetendo ao império autoritário do Estado. As palavras de Luís Montenegro respondem a este erro e desvio. E por isso é que todos notaram que esta foi a passagem, de longe, mais aplaudida do seu discurso. Porquê? Porque, naquela altura, espontaneamente, centenas de pessoas sentiram-se “libertas das amarras”. Os jornalistas podiam ter atentado nisto. É que as pessoas comuns têm medo do Estado e a esquerda, enquanto governou, usou essa intimidação sobre as pessoas. As palmas, sem qualquer orquestração, corresponderam a um espontâneo sentimento de alívio.

Uma das linhas de condução estratégica da AD tem de ser, como é evidente, a recuperação de eleitores que se afastaram, desapontados e descontentes. Não indo já aos 50,4% de 2011, os partidos da AD tiveram 2.086.165 eleitores, em 2015, e 1.867.464, em 2024. É preciso recuperar 200 mil votos e ir ainda para cima disso, pois o resultado de 2015 foi curto. Para isso, a AD não deve buscar a agenda de outros, mas cultivar temas que foram sempre seus, mas que, sob pressão externa, descurou e negligenciou. Não esquecer: as vozes do PS votam no PS. E não vale representar. Não há pior para um eleitor do que ver alguém, deputado ou dirigente, falar, deixando transparecer que não acredita.

Vou confessar uma observação que me veio ao espírito, a certa altura do Congresso: o que está aqui é o PPD. Creio que esta é a melhor síntese do discurso de encerramento de Luís Montenegro: está de volta o PPD. Não sei se estou certo, mas, se assim for, que tenha fôlego e sabedoria para longa viagem.