Durante a última década tem-se popularizado o conceito de ciência cidadã. A ideia é simples. Envolver cidadãos que não trabalhem em ciência, com ou sem qualificações universitárias, tenham ou não tenham finalmente resolvido o puzzle energético da fusão nuclear, em projetos científicos. Certas tarefas envolvem carregar em bases de dados fotografias de espécies marinhas particulares, como a manta Mobula munkiana, durante mergulhos em águas do México ou Bimini. Deste modo, biólogos marinhos podem melhor entender padrões de migração ou o aparecimento de um espécime particularmente interessante (veja-se o caso da Manta Cor de Rosa). Outras iniciativas, requerem alertar e anotar quantos tubarões e de que espécie foram avistados nas costas da África do Sul; ou em Trás-os-Montes… No Reino Unido, a Shark Trust, sociedade de proteção das mais de 500 espécies de tubarão, organiza caçadas a bolsas de sereia (mermaid purses, em bom Britânico), bolsas de onde nascem várias espécies de tubarão ovíparas. O cidadão deve depois indicar o que encontrou e a onde o encontrou. A ciência cidadã é uma via activa de introduzir crianças e adultos à ciência. E porque se interessam cada vez mais os cientistas por estes projectos?
Colaboração é hoje em dia um ingrediente essencial nos corredores académicos. Há duas décadas, podia o cientista esconder-se na sua gaiola de Faraday, testar os neurónios eletrofisiologicamente usando as técnicas que aprendeu e aperfeiçoou durante anos, adicionar drogas experimentais, medir, rigorosamente, mais sinais neuronais e como estes mudam em relação à presença da droga. Seguia-se a escrita do artigo científico, sem necessidade de partilhar de algum modo os dados originais usados para os gráficos e tabelas apresentados e as conclusões obtidas. Cada vez mais, um investigador do século XXI, usa uma dantesca variedade de técnicas e a publicação de artigos em vários ramos científicos (como a neurociência, por exemplo) geralmente envolve resultados obtidos através de técnicas bastantes díspares ao serviço de um tópico de investigação comum (por exemplo, o desenvolvimento de diferentes tipos de neurônio no cérebro – neurogênese). Com o emergir de tecnologia e técnicas que permitem a aquisição de vastos números de dados, e da facilidade de partilhar dados em fontes públicas, a ciência é também cada vez mais colaborativa. E por isso, os cientistas precisam de ajuda para processar, mapear e caracterizar todos estes dados, tarefa que consome muito tempo. Os génios futuristas são massa para os livros de ficção científica como Plutoshine e The Expanse. Mais do que génios, a ciência precisa do colectivo, do trabalho de equipa. E se houvesse maneira de recrutar voluntários para ajudar?
A plataforma Zooniverse providencia uma lista de projectos com grande volume de dados. O interessado pode voluntariar-se e ajudar a classificar imagens por categorias pré definidas pelos investigadores, analisar e identificar objectos e quantidades de interesse, ou anotar imagens/vídeos identificando nelas objectos ou artefactos relevantes. Cada projecto inclui uma descrição dos objectivos do projecto e um tutorial, mais ou menos extensivo, da tarefa a realizar. Em Gravity Spy, pede-se ajuda para identificar sinais que indiquem a presença de ondas gravitacionais. Em Shark Spy, pede-se que se conte o número de tubarões em vídeos de curta duração. Synaptic Zoo tem como objetivo melhorar um algoritmo automatizado que distingue diferentes tipos de sinapse, o ponto de contacto entre neurónios. Nest Quest Go tem como objectivo melhor perceber os padrões de construção e localização de ninhos observados em diversas espécies de corvídeo. Em Zooniverse também estão disponíveis projectos de identificação de palavras esborratadas em diários de navegação ou manuscritos de escritores difíceis de ler, estes projectos menos científicos mas também interessantes. Note-se que o cidadão cientista não tem que se restringir a um só projecto, ou sequer comprometer-se com um projecto específico por mais de uns segundos! Vale a pena tentar vários projectos até encontrar um cujo tópico cative o cidadão e que a tarefa a realizar seja adequada.
Muitos projetos têm secções de discussão activas. Pode fazer perguntas sobre casos específicos, fazer perguntas acerca da ciência por detrás do projecto, sugerir ideias para o futuro. Também pode ajudar outros cientistas cidadãos, se for oportuno, com classificações/identificações ou conceitos difíceis. Em certos projectos, os investigadores por detrás do projecto estão muito activos, são receptivos a sugestões e apresentam enorme simpatia e agradecimento enquanto noutros projectos a comunicação é mais esparsa, ou quase inexistente. Como cidadão cientista, pode cingir-se a uma dúzia de classificações, ou deixar incubar e florescer uma obsessão saudável; e acidentalmente, classificar 26.000 itens num curto espaço de tempo (como o autor deste artigo, projeto SuperWASP), entre observações telescópicas amadoras e uma garrafa de cerveja Trappist (para os interessados em ciências planetárias e exoplanetas, o sistema TRAPPIST-1 será familar). Certas tarefas podem ser realizadas usando telemóveis, para outras será conveniente um ecrã um pouco maior. Isto porque alguns projetos requerem interação com as imagens, enquanto outros basta escolher a categoria de classificação que melhor descreve a imagem apresentada (para estes qualquer smartphone serve).
De realçar que muitos dos projectos disponíveis em Zooniverse culminam em artigos científicos revistos por pares (peer-review) e publicados em jornais de biologia, física e astronomia e muitos estão disponíveis para qualquer um ler. Dos vários já publicados destaco um projeto sobre simulações computacionais de galáxias espirais (Galaxy Builder), um sobre diferentes categorias de estrelas variáveis (SuperWASP Variable Stars) e um de reconhecimento facial de animais (Understanding Animal Faces). Para ler alguns destes artigos pode dirigir-se à secção de Publications no site de Zooniverse.
Recomendo, fortemente, como ponto de partida, o projeto Mars Cloudspotting (Figura 1). Este projecto, liderado por Marek Slipski e Armin Kleinboehl, tem como objectivo identificar a presença e distribuição vertical de nuvens na atmosfera de Marte. Através de dados obtidos pela Mars Climate Sounder (MCS) é requerido ao voluntário identificar os picos de quaisquer arcos presentes na imagem (Figura 2). Estes arcos indicam a presença de nuvens e o pico indica a que altura estão as nuvens na atmosfera. Marek e o grupo de investigação já realizaram quatro webinários desde o lançamento do projecto onde falaram sobre a composição química das nuvens Marcianas, explicaram os objetivos científicos da investigação em mais detalhe, como os dados serão analisados e que técnicas computacionais (machine learning) estão a usar para aproveitar e integrar as identificações de diversos voluntários; já apresentaram também alguns resultados preliminares. Para os mais impacientes, este projecto dá actualizações e reforça a mais valia que os cidadãos cientistas provisionam a ciência do século XXI.
Esteja de férias na Escócia ou no seu castelo em Almada, Zooniverse dá-lhe a oportunidade de fazer voluntariado e ciência, a um ecrã de distância. Quem sabe, talvez os nossos descendentes Marcianos um dia se lembrem que foi através das nossas classificações e identificações que primeiro aprendemos sobre a dinâmica global das nuvens em Marte. Aqui deixo o link para Zooniverse.
Se for cientista de profissão, a plataforma Zooniverse também lhe poderá interessar. O site providencia uma checklist compreensiva dos passos necessários para estabelecer um projecto e oferece assistência técnica.
PS – Como muitas expressões britânicas, o termo original para ciência cidadã, Citizen Science, soa mais elegante, mas não se perca a riqueza do conceito pela tradução.