Do mesmo modo que um cínico facilmente poder ser chefe de papalvos, um papalvo também pode ser chefe de cínicos. Não é incomum que um cínico, usando de astúcia, mande em papalvos. Quando assim acontece, a artimanha do cínico sobressai. Mas o cínico colocar-se sob a autoridade de um papalvo é de uma astúcia superior. Sim, é astuto um cínico mandar em papalvos, mas um papalvo mandar em cínicos é uma vitória ainda maior desse mesmo cínico. Em todos os casos, seja o primeiro, em que o cínico comanda papalvos, seja o segundo, em que o papalvo está colocado na autoridade sobre os cínicos, ganha o cinismo.
Costuma dizer-se que em terra de cegos quem tem olho é rei. Isto não é muito diferente da questão de um cínico chefiar papalvos. Continua a acontecer hoje como aconteceu no passado porque os escroques não passaram da validade. Mas diria que detectar mais um caso em que um cínico chefia papalvos não é grande descoberta. Porquê? Porque problema maior no mundo não é hoje o de cínicos chefiarem papalvos, mas o de papalvos chefiarem cínicos. E porquê? Acredito que actualmente se democratiza mais o cinismo do que a papalvice. Um papalvo sincero é hoje um património a preservar. Já de cínicos o stock não se esgota.
No tempo em que estatisticamente era mais provável um cínico chefiar papalvos do que um papalvo ser colocado como chefe de cínicos, os papalvos tinham em sua defesa a papalvice sincera. Papalvos sinceros possuem uma ignorância real e, em muitos defeitos consequentes dessa ignorância, não se conta serem dissimulados. Já com os cínicos que se colocam sob a autoridade de papalvos não há pinga de sinceridade. O cínico, naturalmente, é um dissimulado. Como dissimulado que é, sem pinga de sinceridade, o cínico coloca-se sob a autoridade do papalvo porque o papalvo, claro está, não manda realmente num centímetro que seja do cínico.
O cínico escolhe ser governado por um papalvo precisamente porque o cínico é ingovernável e só um papalvo poderia acreditar que cínicos se deixam governar. O maior problema dos nossos sistemas políticos actuais não é o risco de serem tomados por cínicos, que ponham e disponham sobre nós, papalvos que somos. O maior problema dos nossos sistemas políticos actuais é que são os cínicos governados que escolhem os papalvos que os julgam governar, numa farsa generalizada. Se vivêssemos num mundo em que os cínicos ainda podiam tiranizar os papalvos a nossa desgraça seria menor. A maior desgraça é exactamente a de que os déspotas são os súbditos e os governantes os secretamente oprimidos.
Já vi este fenómeno de papalvos serem colocados como chefes de cínicos em lugares diversos: estados, igrejas, gangues. Não gosto de ver cínicos a mandar em papalvos mas, sinceramente, hoje choca-me mais papalvos feitos chefes de cínicos. Quando um cínico chefia papalvos a maldade é inferior do que quando cínicos se colocam sob papalvos. Cínicos colocam-se sob a autoridade de papalvos para disfarçarem a sua superioridade moral mas o truque só resulta com papalvos mesmo. O papalvo que foi colocado por cínicos a mandar neles é o único, que habitado ainda por alguma genuína credulidade, toma os cínicos como se sinceros fossem.
Julgo ser mais cínico do que papalvo. Não sou estranho a saber mandar em papalvos mas também não sou estranho a colocar-me sob a autoridade de papalvos. E sei que quando faço a segunda, faço a pior. Porque, quando me coloco sob a aparente autoridade de um papalvo, jogo com a mentira dupla que é convencer o papalvo de que ele manda alguma coisa em mim, e convencer-me a mim de que sou mandado pelo papalvo. Nem uma nem outra acontecem. Mas também é verdade que quanto mais cínico for, mais me torno o papalvo de mim próprio.