A nossa tendência é para fazer coisas de propósito; mas são-nos também familiares casos em que fazemos coisas sem querer. A diferença conta em matérias de crime, de história, de economia, e de política. Matar alguém sem querer é com razão considerado menos grave que matar alguém de propósito, porque naquele caso se fez uma coisa que não se queria fazer.
Uma terceira situação merece todavia ser considerada: o caso em que fazemos coisas de propósito para poder fazer outras coisas. Posta assim a situação parece rara e misteriosa: mas é muito comum. Vemos alguém passar os dias a jogar às cartas; é opinião geral que se vemos alguém a jogar às cartas de propósito essa pessoa está a jogar às cartas. Estará porém realmente a jogar às cartas? A pergunta parece à primeira vista supérflua. Existe no entanto sempre a possibilidade de essa pessoa não estar a fazer o que nos parece à primeira vista.
Há várias maneiras de tirar as dúvidas: a maneira normal é perguntar-lhe porque é que joga tantas vezes às cartas. A pessoa pode muito bem responder que o seu objectivo é conversar com outras pessoas. Um jogo de cartas, acrescentará, é a situação ideal, porque permite ao mesmo tempo que se converse e que se interrompam as conversas. ‘Aquilo que os outros vêem como jogar às cartas,’ conclui, ‘é para mim um meio de conversar com outras pessoas’ (há no entanto uma relação prática entre jogar às cartas e conversar; quando o objectivo é conversar, fazer caça submarina não é um bom meio.)
Considerado o modo como a maioria de nós joga às cartas é bem possível que afinal o façamos por outras razões. Custa a acreditar que os grandes números de pessoas que nos jardins públicos cometem os mesmos erros de carteio durante trinta anos a fio estejam realmente a jogar às cartas. Fazem o que fazem, como a maioria deles aliás reconhecerá sem dificuldade, porque gostam mais de fazer outras coisas, nomeadamente conversar com pessoas parecidas com eles, e que, se tiverem gostos parecidos, quase todas jogarão mal às cartas. Jogar às cartas é uma coisa que fazem para poderem fazer outra coisa.
Não se poderá negar totalmente que os septuagenários que vemos pelos jardins estejam em algum sentido remoto a jogar às cartas. A descrição é porém incompleta: é como dizer que o assassinato se deu porque o assassino mexeu o indicador direito de propósito, ou que quando está calor muita gente toca deliberadamente em copos com a boca. É incompleta porque omite aquilo que foi o motivo principal para os septuagenários terem aprendido a jogar. Ver alguém fazer uma coisa não basta para concluir instantaneamente que está a fazer aquilo que vemos; para saber o que alguém está realmente a fazer precisamos de algum tempo.