A terceira quinta-feira do mês de Novembro – este ano, dia 17 –, por proclamação da UNESCO, é o dia internacional da Filosofia. Já que cá estamos, aproveito a desculpa para dizer umas palavrinhas sobre “o que é a Filosofia”. A pergunta já é, em si, filosófica… e isso diz-nos algo sobre a Filosofia, por oposição às outras ciências. É que as perguntas “o que é a Física?”, “o que é a Biologia?”, “o que é a Economia?”, etc., não são perguntas físicas, biológicas ou económicas; são perguntas filosóficas. Todas as ciências, então, recorrem à Filosofia para se definirem – estratégia que a própria Filosofia, pela humildade própria aos grandes caracteres, não pode usar. Não há “uma outra”, mais universal, a que a Filosofia possa recorrer. Daí que esta pergunta (aparentemente tão inocente) – “o que é a Filosofia?” – seja uma questão particularmente difícil de responder.

Muitos, evadindo as expectativas de quem coloca a questão, refugiam-se numa etimologia da palavra: “amizade, ou amor, pela sabedoria”. Ora, não sendo isto mentira nenhuma, é uma resposta bastante incompleta; tal como não é falso que a Biologia seja o “discurso sobre a vida”, ou a Economia a “regulação da casa”.

Uma outra resposta, conceptualmente mais exacta e certamente mais esclarecedora, mas impraticável, é uma revisão da actividade concreta dos filósofos. Veja o leitor que é o que fazemos quando queremos explicar a uma criança, por exemplo, o que é a Medicina: explicamos o que fazem os médicos. O problema em aplicar esta solução à Filosofia é que, ao contrário das outras ciências, não é o caso que a Filosofia feita no século XXI seja, ipso facto, melhor, ou “mais filosófica”, do que aquela feita no século XIII; nem, por exemplo, os filósofos alemães fazem o mesmo que os anglo-saxónicos. Para seguir este método, então, teria o caro leitor de aguardar pacientemente que lhe explicasse toda a história da Filosofia: o que fazia Sócrates em Atenas; o que fez Platão; o que fez Aristóteles; o que fez Epicuro; o que fez Marco Aurélio; o que fez Plotino; o que fez Agostinho de Hipona; o que fez Tomás de Aquino; o que fez David Hume; o que fez Immanuel Kant; o que fez John Stuart Mill; o que fez Hegel… Teria até de lhe dizer coisas que não sei, como o que fez Confúcio e o que dizem as várias filosofias africanas.

A resposta, então, que posso dar é uma muito pessoal – e por esse facto muito circunscrita. Ainda assim, como “quem dá o que tem a mais não é obrigado”, aqui vai uma curta reflexão pessoal. É a minha opinião que a filosofia, enquanto actividade, é a melhor das actividades humanas. E isto não é uma “snobice” minha, como se, por estudar e ensinar Filosofia, fosse melhor do que os outros. Bem pelo contrário, esta minha posição reflecte algum menosprezo pela dimensão académica da Filosofia. Dizer que o filósofo é o melhor dos homens, neste contexto, não significa que um subconjunto dos homens seja melhor do que os outros; significa, pura e simplesmente, que o melhor de cada homem é a sua parte filosófica. Creio-o, primeiramente, porque sou católico; e julgo que nenhum homem o poderá ser se não for filósofo, isto é, se não buscar com todo o seu ser a Verdadeira Sabedoria. Mas, em segunda instância, creio-o porque não serve de nada ter um instrumento se não o soubermos usar; e não serve de nada uma vida se não soubermos o seu sentido.

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Ao pensar a Filosofia, penso-a como um tríptico: algo com “cabeça, tronco e membros”, “início, meio e fim”. Também o vôo de um avião tem o descolar, a velocidade de cruzeiro e o aterrar. Tudo isso é “pilotar”, mas apenas um grande ignorante acharia que, sabendo aterrar, saberia por isso descolar, ou que, sabendo manter o avião no ar, saberia por isso aterrar. A essas três dimensões chamarei atitude filosófica, processo filosófico e estado filosófico.

A atitude filosófica, que é o início da Filosofia, é a atitude de espanto. O mundo é grande, o mundo é diferente de nós, e isso é espantoso. É maravilhoso. A maravilha, disse Tomás de Aquino, é um efeito cuja causa nos é parcialmente velada. Por outras palavras, o mundo em nosso redor dá-se numa teia complexa de causas e efeitos; algumas dessas ligações são-nos evidentes e límpidas, enquanto outras nos são obscuras. A atitude filosófica é aquela de se deixar interrogar por essa obscuridade – e de desejar trazê-la para a luz. Isto não significa que o filósofo tenha uma aversão por maravilhas; bem pelo contrário, o filósofo é o único capaz de apreciar profundamente uma maravilha, por ser o único que se deixa interpelar pelo seu convite.

Ao contemplar uma maravilha, como disse Xavier Zubiri, o filósofo não apenas “estranha esse efeito” cuja causa lhe aparece em parte velada, como “se estranha a si mesmo” diante dele. Trocado por miúdos, então, espantado com o que serão as estrelas, o verdadeiro filósofo espantar-se-á muito mais com aquela estranha criatura, dita racional, que se pergunta o que são as estrelas. Não porque já não se interesse pelas estrelas… mas precisamente porque não pode deixar de querer saber o que elas são!

Há-de parecer evidente, então, por que motivo esta dimensão é a propulsora da Filosofia. “O que é o bem?”, “o que é a sabedoria?”, “o que é a beleza?”, “o que é a verdade?”, “o que é o Ser?”, “o que significa agir bem?”, “o que é o amor?”, “o que é a realidade?”, “o que é a solidão?”, “o que é a felicidade?”, “o que é a paz?”, “qual é a melhor forma de governar?”, “o que é a liberdade?”… são algumas das inumeráveis perguntas que colocam os filósofos. A atitude filosófica, então, caracteriza-se pela capacidade de se colocar perguntas. Mas não vale qualquer pergunta – ou melhor, não vale uma pergunta colocada por qualquer motivo. A atitude filosófica, como disse, é a atitude de quem, olhando o seu redor, se deixa interpelar. Não é uma mera curiosidade “egoísta”, um querer saber para sermos chico-espertos; é uma curiosidade “humilde”, um querer saber porque o mundo nos faz as perguntas. As perguntas filosóficas, então, não são perguntas que colocamos, mas perguntas que se colocam diante de nós, perguntas cuja grandiosidade não podemos evadir. O contrário do filósofo, desde este ponto de vista, então, é, ou o distraído, que não ouve o zumbir das flores, ou o covarde, que, ouvindo, não ousa procurar resposta.

O processo filosófico é precisamente essa procura de resposta, ou, como disse antes, o procurar trazer à luz aquelas causas obscuras e desconhecidas. O trabalho do filósofo não é “inventar” a realidade, fazer uma espécie de estrutura paralela, uma “teoria da conspiração que englobe toda a realidade”; o trabalho do filósofo, o seu processo, é buscar incessantemente compreender, sem conspiração, essa realidade. Tal como, em certa medida, não é o filósofo que faz a pergunta, mas esta que se lhe apresenta; também não é o filósofo que fabrica a resposta. Ele apenas a recebe. De quem? Da própria realidade, da existência simples das coisas, que lhe fala à sua própria existência.

O processo filosófico, porém, não é passivo. A escuta que cabe ao filósofo é activa! É-lhe requerida uma espécie de tradução, na qual, ouvindo e recebendo com paciência e humildade os dados que a experiência e o contacto com o mundo fora de si lhe impõem, deve, através de um processo racional e meticuloso – que não pode deixar de ser longo, e por isso simultaneamente belo e frustrante –, chegar a colocar em linguagem humana os traços definidores desses mistérios profundos.

Peter Kreeft fala-nos de duas tendências reprováveis dos vários filósofos contemporâneos: uns dedicam-se a temas supérfluos com rigor e precisão; outros debruçam-se sobre perguntas fulcrais para a vida humana, mas discutem o assunto como se tudo não passasse de uma conversa de café. Por algum motivo, isto criou a imagem popular de que os filósofos são pessoas que debatem, com o rigor intelectual próprio de uma peixaria, assuntos tão inúteis como alienadores. A realidade, porém, é precisamente o oposto: os (verdadeiros) filósofos, fiéis à atitude filosófica, debruçam-se sobre o que de mais nobre há nesta Terra; e, fiéis ao modo próprio do processo filosófico, fazem-no com método e rigor, com a timidez própria de quem é discípulo da realidade e com a determinação própria de quem é mestre dos homens.

Há quem julgue que o filósofo faz perguntas que não têm resposta, ou que, se têm, não lhe serão nunca acessíveis. Para esses partidários, então, não faz sentido falar de estado filosófico. O estado filosófico é o “aterrar” deste processo filosófico. Ouvimos a pergunta colocar-se diante de nós e tivemos a coragem de escutar pacientemente a resposta que se lhe seguiu; pusemos o melhor de nós mesmos em cima da mesa – com toda a fragilidade que isso implica – e atirámo-nos, navegando incansavelmente aos quatro ventos, em busca dessa resposta. Ou o mundo é macabro, ou alguma resposta havemos de encontrar. Terá essa resposta uma dimensão de certeza? Talvez sim, talvez não. Dizia já Aristóteles que perguntas diferentes terão respostas com graus de certeza diferentes – basta olhar para o contraste entre a Física e a Sociologia. Mas a ilação, que hoje tanto se faz, de que a Filosofia é a “ciência do opinismo”, é falsa.

Ora, nada disto significa que a Filosofia tenha um termo. Uma tendência fácil, mas enganadora, seria assumir que estas três dimensões se dão sequencialmente. Em certa medida (e eis o que torna esta tendência tão fácil), isso é verdade: eu recebo uma pergunta, procuro uma resposta, chego a essa resposta. Mas isso não é uma característica da Filosofia em si, mas da filosofia aplicada a uma questão particular. Para a Filosofia enquanto tal, a atitude filosófica, o processo filosófico e o estado filosófico coexistem permanentemente. Esta noção de “Filosofia enquanto tal” não é uma abstracção vazia: bem pelo contrário, é a dimensão mais real e concreta da Filosofia – qualquer que seja o filósofo, em qualquer que seja o momento temporal em consideração, não é nunca o caso que este esteja apenas em atitude, para depois passar ao processo e por fim chegar ao estado filosófico. Não são fases, mas dimensões. Mesmo aplicando a filosofia a uma questão particular – por exemplo, qual é o sentido da vida? –, não poderemos nunca individuar se determinado filósofo se encontra em atitude filosófica, processo filosófico ou estado filosófico.

Significa isso que o estado filosófico não é um “estado final” da Filosofia? Vejamos. Estamos agora, finalmente, aptos a delinear o que é esse estado filosófico. Há uma distinção clássica na história da Filosofia (em concreto na história da Filosofia do Conhecimento) particularmente poderosa, mas também particularmente perigosa. Distingue-se tipicamente o conhecimento em “proposicional”, “prático” e “pessoal”. Todo o conhecimento é a relação entre um sujeito e um objecto; assim, esta distinção dá-se consoante o tipo de objecto conhecido: uma proposição, uma perícia e uma realidade “extra-mental”. Três exemplos, respectivamente, seriam: saber que Lisboa é a capital de Portugal, saber falar Português e conhecer Lisboa. O estado filosófico, embora inclua algum conhecimento proposicional e implique algum tipo de conhecimento prático, é eminentemente um conhecimento pessoal. Ou seja, diante da pergunta “o que é a tempo?”, o filósofo formulará algum conhecimento proposicional, e a sua empresa de pesquisa dar-lhe-á algum conhecimento prático, mas a sua resposta será um conhecimento pessoal: “conheço o tempo”, “conheço a felicidade”.

O estado filosófico, então, é aquilo que significa propriamente ser sábio. Embora a pesquisa filosófica – isto é, o processo filosófico – vá passar por um grande processo indutivo ou dedutivo, por discussões agudas e demoradas, o estado filosófico, como previra já Platão, é um estado contemplativo. Isto faz do filósofo, ao mesmo tempo sequencial e simultaneamente um curioso humilde, um investigador escrupuloso e um verdadeiro sábio. Mais intimamente, isto faz do filósofo, antes de mais e sobretudo, um contemplador. Não se trata de chegar a um estado em que as perguntas se anulam e a chama das maravilhas é apagada; bem pelo contrário, trata-se de saber ver, em cada provocação desse mundo que nos rodeia, não um problema, mas um mistério, uma nuvem misteriosa que devemos olhar e não apedrejar com perguntas, um incenso que devemos inalar e deixar ascender e não tentar agarrar com as mãos.

É este, hoje, em honra do Dia Internacional da Filosofia, o meu esboço de resposta à eterna pergunta “o que é a Filosofia?”. O leitor, esperemos, terá sentido um bichinho, ainda que ténue, de se deixar perguntar pela realidade. Se tiver a ousadia necessária, talvez até se dedique a procurar resposta a essas perguntas. Se o fizer com o rigor próprio de tão grandiosa empresa, chegará, a pouco e pouco, a contemplar realmente as questões que se deixou colocar.

A este ponto, depois de examinar longamente a Filosofia do ponto de vista da sua actividade, poderá o leitor ainda inquirir-me acerca do seu fruto. De facto, a Geologia não é só a actividade – atitude, processo e estado – dos vários geólogos, mas manifesta-se no fruto concreto de uma rede complexa de descobertas científicas. A essa pergunta, dentro do âmbito deste texto, que já vai longo, posso apenas dar ao leitor um nome, que, se tiver real interesse, poderá por si mesmo pesquisar. E esse nome – permita-me dar-lho no original – é, a meu ver, a philosophia perennis.