Há em português um velho ditado cuja profundidade remonta à Grécia Antiga e aos próprios pais da civilização ocidental – “no meio”, diriam as nossas avós, “está a virtude”. Isto, claro, está longe de significar que, entre três quaisquer objectos, aquele que casualmente está no meio é, ipso facto, melhor. O que este dito significa (ou, pelo menos, o que significou na pena de Aristóteles) é que a virtude não é, como por vezes se pensa, o extremo contrário de um vício – como se a coragem fosse o extremo contrário do medo. Uma virtude é, isso sim, um “meio termo”, um “justo meio” entre dois extremos opostos. Assim, tomando o mesmo exemplo, a coragem não é o contrário do medo, mas antes o ponto de equilíbrio entre o medo e aquilo a que chamamos temeridade. Isto, claro, significa que uma pessoa corajosa terá algumas vezes de agir de um modo aparentemente mais medroso (como quando opta por não confrontar um homem armado), enquanto noutras situações deverá agir de um modo aparentemente mais temerário (como quando resgata um bebé de um edifício em chamas).

Este texto, porém, não é sobre a coragem, mas sobre as trincheiras do bom-senso. E o que têm as virtudes a ver com o bom-senso, para lá de um homem com bom-senso ser virtuoso, e de querer ser virtuoso ser um óptimo indício de bom-senso? O seguinte: tal como a coragem, ao degradar-se, cai para dois lados opostos; ou, ao erguer-se, confronta-se com dois extremos contrários; assim também, nos nossos tempos, o bom-senso degenerou em contradições absurdas e, para se reerguer, deve pelejar em duas frentes contraditórias.

Dito de forma mais poética, então, contrariamente ao que muitos nos fariam crer, o bom-senso não emergirá ordinariamente de intuições isoladas ou revelações privadas – embora essas possam extraordinariamente ocorrer. Tampouco será o fruto de argumentações tranquilas e discussões civilizadas – embora disso tenha sido já tempo. (É que a consideração pela intuição, revelações, argumentação e civilização é, já isso, uma concessão ao bom-senso!) Nestes nossos dias – que, no dizer do profeta, são os últimos –, o bom-senso emergirá dos lagos e rios de sangue e tinta travados entre dois extremos. Não se trata de uma luta pueril, mas de uma campanha militar bem organizada. A razão, claro, ama o bom-senso com todo o seu ser e aguarda-o com a amada ao seu amado. Porém, porque não se degradou em um, mas em dois extremos, o bom-senso é alvo de não um, mas de dois perigos, e a guerra em sua defesa deverá travar-se em trincheiras de duas frentes. Em duas frentes, porque esses são os perigos; em trincheiras, porque o avanço será lento e penoso.

O nosso mundo contemporâneo, radicalmente desequilibrado e enlouquecido, louva a liberdade na praça pública. Lutamos pela liberdade, não apenas de viver, mas também de morrer. “Os nossos pais” lutaram para que fossemos livres, para que pudéssemos fazer o que quiséssemos (ou melhor, para que não tivéssemos de fazer o que não queremos – e a diferença está em que não sabemos o que desejamos). Ambicionamos, então, uma liberdade contraditória, uma liberdade vazia, uma liberdade que não significa senão ausência de coacção. Mas basta dedo e meio de testa para perceber que o homem nunca será absolutamente livre de coacção enquanto não for livre para prosseguir um plano de vida. Esta liberdade absurda, então, caro leitor, é uma das frentes em que deve lutar o bom-senso.

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Mas qual é a outra? A outra é a da liberdade na esfera privada. Enquanto na praça pública todos louvarão a liberdade, nas suas reflexões privadas – e, de maneira ainda mais grave, nos átrios de algumas universidades – os homens e mulheres do nosso tempo defenderão que a liberdade é uma ilusão. “Tudo o que existe”, dirão eles, “são átomos e forças descritíveis pelas leis deterministas da Física e da Biologia”. Isto, claro, para além de ser uma má física e uma filosofia execrável, é quase o apogeu da irracionalidade. De qualquer modo, os nossos tempos estão cheios deste triste dogmatismo: não temos livre-arbítrio, resta-nos viver como se tivéssemos.

É, então, nesta dupla frente de batalha que o bom-senso deve pelejar. Por um lado, deverá ensinar aos nossos demagogos que há valores mais altos do que a liberdade – e deve ensinar-lhes o b.a.ba da racionalidade: ninguém quereria ser livre se não quisesse algo mais a partir dessa liberdade, isto é, se não tivesse algum valor mais alto para aspirar com a sua liberdade – ou então quereríamos a falsa liberdade de uma folha que voa ao vento e que vai para onde o vento a leva. Por outro lado, o legionário do bom-senso deverá entrar pelos quartos e universidades, para ensinar boa física e melhor filosofia, para fazer ver que nada há mais evidente do que o nosso livre-arbítrio, e que esse livre-arbítrio se deve colocar em marcha para construir grandes coisas.

Isto, porém, caro leitor, é apenas um exemplo. A guerra pelo bom-senso não se dá em apenas uma batalha: as batalhas são inúmeras, e todas se jogam em duas frentes. Assim, por exemplo, o apóstolo do bom-senso deverá lutar contra a ideia absurda de que o nosso corpo não determina o nosso género, ao mesmo tempo que combate a heresia intelectual de que tudo o homem não é senão matéria. O cavaleiro do bom-senso deverá batalhar, numa frente, contra quantos digam que a vida humana não é inviolável desde a concepção e, na frente oposta, contra quantos considerem um crime hediondo comer ovos estrelados. O ungido do bom-senso deverá não apenas cavalgar contra quantos defendem o direito à morte, mas também, na frente contrária, contra quantos defendem o hedonismo como único critério de moralidade. E note-se bem! Não estou apenas a dizer que a ideologia de género e o materialismo, o aborto e o veganismo ideológico, a eutanásia e hedonismo são absurdos cada um em si (que são!) – estou a realçar o facto, muito mais triste e surpreendente, de serem ainda contraditórios entre si… e de serem defendidos pela mesma pessoa na mesma conversa.

O bom-senso, que é um fino equilíbrio, ao cair, caiu em extremos opostos – para se reerguer, então, deverá lutar pacientemente contra duas frentes contraditórias, entrincheirado na sabedoria dos nossos antepassados, recordando as promessas de uma vida coerente e contemplando o horizonte de irracionalidade por libertar. Mas, ao final do dia, caro leitor, o bom-senso não poderá batalhar coisa nenhuma. Esta guerra, claro, cabe-lhe a si e a mim, na medida em que nos resta algum bom-senso. Acaso poderemos, calando-nos, como Pilatos lavar as nossas mãos do sangue do Ocidente? E se por falarmos nos odiarem e perdermos amigos e horas de sono, não será tudo isso apenas mérito para a nossa condecoração?

Cognoscetis veritatem, et veritas liberabit vos.
(Ioan. VIII, XXXII)