A terceira terça-feira de Novembro, por declaração da UNESCO, é o dia internacional da Filosofia. O presente texto pretende assinalar e celebrar esse dia.

Não sendo o leitor demasiado velho ou demasiado novo, terá já sido torturado, no ensino secundário, com a execrável questão — o que é a Filosofia? As perguntas “o que é” são, claro, as melhores, mas nada impede que uma coisa óptima possa ser totalmente arruinada. É isso mesmo o que acontece quando obrigamos jovens de quinze anos a perguntarem-se acerca de coisas que não lhes interessam e que não têm como interessar. A maravilha das perguntas “o que é”, tal como das perguntas “mas porquê”, é que são perguntas feitas com verdadeira curiosidade; tiremos essa curiosidade e o que sobra é uma meia pergunta mutilada… à qual responder parece outra tanta mutilação.

Por estas e por outras, parece-me evidente que, embora logicamente tudo esteja bem, parece-me uma lapalissada pedagógica que se deveria adiar a questão “o que é a Filosofia?” para bem mais tarde no nosso programa do ensino secundário. Seja como for, não é disso que quero falar hoje. Quero falar, isso sim, daquela bela pergunta e da sua resposta. Deixo apenas um aviso: quem faz perguntas sérias não deve esperar respostas a brincar.

A arte de pensar bem

Há quem diga que a Filosofia é uma arte — a arte de pensar bem. Dediquemos algum tempo a essa ideia. Há, sem dúvida, algo de verdadeiro nela: afinal, o estudo paralelo e crítico de diferentes filósofos, munindo-nos de um grande arcabouço conceptual, desenvolverá em nós um raciocínio mais crítico. Também não há dúvida de que a prática traz o talento, pelo que a prática repetida da filosofia conduzirá a uma agilidade intelectual mais e mais desenvolvida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas há também o outro lado da questão. Pensando bem, a Filosofia não se pode reduzir a pensar bem. A objecção óbvia é que não faltam filósofos que não pensam nada bem. A isso, claro está, poder-se-ia responder que, no fundo, são pseudo-filósofos e não filósofos. Mas há uma segunda objecção, igualmente óbvia: há muita gente — quase toda a gente — que, não sendo filósofa, pensa bem. Poder-se-ia responder que são filósofos anónimos. A terceira objecção é que a “arte de pensar bem” seria uma melhor descrição da Lógica do que da Filosofia. E isso leva-nos a uma objecção mais importante.

Afinal, pensar é um processo, um meio, algo que se faz em prol de outra coisa. Pensamos para chegar a alguma conclusão. Quando um filósofo se senta na escrivaninha, ou calça as botas para sujar as mãos, não o faz para pensar — fá-lo para chegar a conclusões; pensar é apenas um acidente. Ou, melhor dito, pensar — pensar, aliás, de determinado modo (o qual inclui, ou deve incluir, sem sobra de dúvida, pensar bem) — é o método, algo feito como caminho para alcançar uma outra coisa… uma ferramenta. Como é evidente, escolhe-se uma serra para serrar e um martelo para martelar: o método é determinado pelo objectivo que se tem em mente; e, por isso, de maneira igualmente evidente, esse objectivo (ou, como diriam os gregos, esse télos, essa finalidade) é que definirá a Filosofia.
Isto não é nada de novo. Não definimos a Física por os físicos pensarem bem; definimos, isso sim, por aquilo sobre o qual eles pensam.

Sobre o que pensam os filósofos?

Abram-se os manuais de Filosofia do secundário: Lógica, Filosofia do Homem, Moral, Filosofia Política, Filosofia do Conhecimento, Filosofia da Ciência, Filosofia da Arte, Filosofia da Religião… Fica patente que os filósofos pensam sobre tudo. Sobre “tudo”, claro está, sobre tudo aquilo que é. Mas… num certo sentido, também um sociólogo pensa sobre tudo, ou um psicólogo, ou um físico. A diferença está, claro, no eixo sobre o qual essas coisas são consideradas: um físico preocupa-se com a descrição matemática de todas as coisas em movimento; o psicólogo preocupa-se com a relação de todas as coisas com as cognições e volições dos homens; o sociólogo preocupa-se com a relação de todas as coisas com as relações e dinamismos entre os homens. Qual é esse “eixo”, esse ponto de vista segundo o qual o filósofo estuda a realidade? O filósofo estuda tudo o que é na medida em que é.

A expressão pode parecer estranha, mas — apesar de certamente abstracta — é até bastante simples. Entre um professor universitário e uma senhora da limpeza há muitas diferenças; mas há outras tantas coisas em comum, as quais denominamos, de modo geral, a sua “humanidade”, ou a sua “natureza humana”. Ora, podemos estudar isso — eis a Antropologia ou outra ciência dedicada ao estudo do Homem. De igual modo, há, entre um professor universitário e um canguru, uma multitude de diferenças; e, mais uma vez, outras tantas coisas em comum, as quais chamamos, de modo geral, “animalidade” ou a sua “natureza animal”. Podemos, mais uma vez, estudar isso. Entre o nosso querido catedrático e uma papoila mais diferenças haverá, mas podemos ainda assim dedicar-nos ao estudo do que ambos têm em comum: são seres vivos. Também com uma pedra o nosso professor terá semelhanças: ambos são materiais. Mas o que haverá de comum entre um anjo e um átomo, ou entre uma ideia e uma banheira? Ambos são. É esse ser, essa existência, que constitui o ponto-de-vista da Filosofia — ou, para ser mais específico, da Metafísica: a ciência que estuda o ser enquanto ser.

Mas como estudar tudo isto? Qual é o método adequado para construir o edifício deste conhecimento? Temos neste problema a raiz da divisão entre as várias escolas filosóficas. E também o coração da chamada “Filosofia Escolástica”. Esta corrente filosófica (que, por razões históricas, está intimamente associada com a Igreja Católica) considera que a Filosofia não é uma actividade de indivíduos, mas de pessoas — e, por isso, de uma comunidade. Por outras palavras, rejeita-se que seja o trabalho de um só homem (por muito genial que seja), mas de uma comunidade de filósofos, que juntos apresentam propostas, teorias, argumentos, os quais são debatidos e escrutinados. É inegável que homens brilhantes apresentam contributos de destaque; mas seria um erro fazer isso redundar numa identificação da “filosofia” com um sistema de pensamento.

Eis outro modo de colocar a questão: a Filosofia é, sim, um corpo — e não apenas um “processo” (o processo de pensar). Mas é, lá está, um corpo vivo — um corpo “em processo”, em transformação… um corpo que, na sua constituição, engloba dinamismos vivos e constantes. Não será difícil de perceber, como disse São Tomás, que um só homem não pode sequer compreender inteiramente a natureza de uma abelha: abarcar todo o ser enquanto ser é necessário um esforço conjunto de investigação e revisão constante.

Permita-me o leitor clarificar que não estamos aqui a voltar ao início. A Filosofia não é uma mera actividade (uma dezena de pessoas estranhas, sentadas de perna cruzada, a “pensar”), mas também não é um mero objectivo (uma estante de livros acabados). É uma escola, viva, activa, unida, orgânica, empenhada, pujante. E, claro, alcança o seu objectivo. A Filosofia chega a declarar algumas coisas como possíveis e verdadeiras — outras como possíveis, mas falsas — outras como necessariamente verdadeiras — outras como absolutamente impossíveis — e outras como inconclusivas. Não que não se engane… mas tampouco se resigna e desiste.

O inimigo mortal da Filosofia é o subjectivismo

Tudo isto poderá parecer, consoante o enquadramento do leitor, ou banalmente óbvio, ou terrivelmente surpreendente. É banalmente óbvio, sim, porque, afinal, se houver diferença entre “pensar bem” e “pensar mal”, significa que o pensar pode chegar a conclusões. Mas terrivelmente surpreendente, sim, porque acarreta consigo a rejeição de um dogma fundamental da pós-modernidade — a saber, não existe verdadeiro e falso, certo e errado. A Filosofia é, como vimos, um ser vivo. E todo o ser vivo tem um inimigo mortal. Este dogma é o seu inimigo mortal e chama-se, consoante o contexto, “subjectivismo” ou “relativismo”. É um dogma e não uma conclusão, pelo que é assumido, mas nunca demonstrado. Não foi e, claro, não se pode demonstrar — como dizer que é verdade que não há verdade? É preciso ser tolo (ou muito distraído) para acreditar nele. Mas é este o mundo em que vivemos.
É um dogma, como disse, característico do pós-modernismo; mas é tão velho como a própria Filosofia: a sua primeira instância conhecida foram os sofistas gregos — e o primeiro herói da Filosofia a ser registado foi Sócrates, ultrapassado depois pelo seu discípulo, Platão, por sua vez ultrapassado de novo pelo seu discípulo, Aristóteles. O maior de todos (parece-me a mim) foi São Tomás de Aquino.

Mas deixemos essas batalhas de outrora. No fim dos tempos, talvez, um derrotará definitivamente o outro. Mas, hoje, no “meio dos tempos”, cabe-lhe a si, caro leitor, alistar-se e combater, para que as trincheiras do bom-senso avancem e a loucura do relativismo recue. Cabe-lhe a si, cabe-me a mim. E havemos-de reconquistar esta península, a Europa, o Ocidente, o mundo!