(Nota: à velocidade a que a tecnologia evolui este artigo de opinião pode estar desatualizado na data da sua publicação)

Um pouco de história

A primeira vez que ouvi falar em combustíveis sintéticos foi quando me interessei pela História do século XX,  especificamente o período desde o início do século até ao fim da Segunda Guerra Mundial. Durante esta guerra, sem  possibilidade de explorar petróleo, refiná-lo e fabricar gasolina e gasóleo quer para as necessidades industriais, quer  domésticas e principalmente para o esforço de guerra, a engenharia alemã procurou resolver (e resolveu) o problema e  obteve combustíveis sintéticos para colmatar as carências militares(carros de combate, aviação, etc.). O processo químico  e industrial da época, denominado processo Fischer-Trops, derivado do nome dos engenheiros alemães que o  conceberam, permitiu que a indústria alemã desenvolvesse e industrializasse a produção de hidrocarbonetos líquidos a  partir do carvão, abundante na Alemanha. Finda a Segunda Guerra Mundial foi depois a África do Sul que se interessou por este  processo durante os anos 1950-1960 devido às sanções impostas pelas Nações Unidas em consequência do apartheid.  Sem petróleo, a África do Sul comprou a patente do processo inventado pelos industriais alemães e desenvolveu, sempre  com base no carvão também abundante na África do Sul, a par com a produção de gás, a produção de combustíveis  líquidos. Na época os processos eram poluentes, mas ainda não constituíam preocupação do ponto de vista ambiental. Os  anos passaram e com as preocupações ambientais, cientificamente comprovadas, foram investigados e desenvolvidos  processos de obtenção “verdes”.

Processo de produção “verde”

Para breve estreia nos motores de Fórmula 1, os combustíveis sintéticos agora designados por e-fuel, surgiram novamente  como alternativa viável e quase neutra em emissões de carbono, em consequência das preocupações ambientais.

Agora amplamente debatidos, os e-fuel têm o seu processo de produção também amplamente divulgado, assim como as  suas vantagens e impacto na economia e na mobilidade, e que aqui se sintetizam.

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Para a obtenção dos e-fuel trata-se de compor um combustível líquido, denominado “de síntese” ou “sintético” a partir do  CO (Monóxido de Carbono) ou CO2 (Dióxido de carbono) e do hidrogénio para que se constitua uma base CHn para que  se obtenha um combustível – como exemplo, o gás natural que atualmente consumimos é o metano CH4 – recorrendo-se  a diversos processos químicos ou bioquímicos. Para a sua afirmação como “verdes” a sua produção tem também que ser  “verde”, ou seja, sem constituintes de origem fóssil, quer em termos de matéria-prima (CO2) recuperada das emissões em  CO2 da indústria, quer em termos da energia utilizada para a sua produção como por exemplo, energias renováveis  dedicadas ao processo.

Para a obtenção do hidrogénio “verde” e sabendo-se que existem regiões do mundo abundantes em vento e/ou Sol, mas  com raros consumidores de eletricidade, estas energias renováveis de armazenamento difícil e/ou dispendioso seriam  aproveitadas para fornecer energia para o processo de eletrólise da água para a obtenção de hidrogénio. Para a obtenção  do CO2 este seria proveniente das emissões geradas pelas centrais de produção de energia elétrica. Seguidamente, pelo  processo Fischer-Trops ou outro, faz-se a combinação do CO2 com o hidrogénio para se obter um gás sintético ou metanol,  fáceis de armazenar e transportar.

Finalmente, do gás sintético ou do metanol, uma última refinação permite obter o combustível desejado: gasolina, gasóleo,  jetfuel para a aviação, óleos …

Temos assim uma “economia circular” à nossa disposição, completamente compatível para a continuidade da produção  de motores térmicos quase isentos de emissões de enxofre, benzeno, aromáticos, etc., com a vantagem suplementar de  já ter em funcionamento a logística de distribuição e de postos de abastecimento.

Os estudos feitos pelo consórcio alemão Namosyn – que integra a Bosch, BMW, Audi, BP, BASF, Schaeffler – demonstraram  que era possível uma redução de pelo menos 50% de partículas e NOx.

O que dizem os construtores de automóveis

Em 2021, já todos os construtores observavam a solução pelos combustíveis sintéticos. Se alguns não a publicitam, são os  alemães que estão mais implicados e investem nesta solução que permitirá neutralizar as emissões em carbono dos  motores térmicos a gasolina ou gasóleo e até no setor da aviação. Porsche, BMW e Audi são marcas que estão envolvidas  nesta solução através de vários processos:

  • a Porsche mais concentrada no melhoramento do processo Fischer-Trops;
  • a  BMW associou-se à americana Prometheus Fuels e tem um processo em curso que consiste em submeter uma solução  aquosa que integra o CO2 do ar ambiente, a uma placa de cobre em tensão elétrica, processo que consegue combinar as  moléculas hidrogénio da água com as moléculas de carbono para criar etanol, que é seguidamente convertido em  combustível. Este processo já em 2021 era considerado de fabrico com custos competitivos relativamente aos  combustíveis fósseis.
  • Por sua vez a Audi explora a via das bactérias com a empresa americana Joule, que faz produzir  diretamente etanol ou gasóleo mediante cianobactérias (bactérias que obtêm energia por fotossíntese. O nome  “cianobactéria” vem do nome da sua cor em grego: kyanós = azul). geneticamente modificadas, que realizam uma espécie  de fotossíntese pela combinação do carbono do CO2 recuperado das emissões industriais com o hidrogénio da água.

Alguns destes e-fuel já estão em produção.

O que dizem as petrolíferas

Ainda que refinadoras, a Total e a Shell afirmam que se adaptarão qualquer que seja o produto de base (por exemplo, a  combinação do CO2 com o hidrogénio “verde” e refinação final). O interesse sobre este assunto varia conforme as  petrolíferas, pois os combustíveis sintéticos concorrem contra o petróleo fóssil. Entretanto a Aramco (Arábia Saudita) e a  Repsol (Espanha) e muitas outras já arrancaram com fábricas-piloto para a produção de combustíveis sintéticos.

Quanto irão custar os combustíveis sintéticos

Para já, as projeções da Aramco para o horizonte 2027-2030 são de 1 €/litro (sem impostos e margens de revenda), embora  outras previsões apontem para que o preço por litro varie entre 0,8 € e 1,6 €/litro (também sem impostos e margens de  revenda). São projeções que podem alterar-se num piscar de olhos em função da atividade de investigação e  desenvolvimento. Portanto, as petrolíferas já se estão a adaptar para permitir colocar no mercado o litro de e-fuel pelo  menos ao preço atual da gasolina. E quanto maior a procura, maior a produção e mais barato será o produto final e menor  será o custo de investimento relativo.

Motivos para acreditar

  • Os combustíveis sintéticos são compatíveis com os motores térmicos existentes, mesmo os antigos, bem como com os  postos de abastecimento atuais. A sua disponibilização a grande escala é assim simples e fracamente geradora de  infraestruturas fontes de emissões. A logística de distribuição e a rede de postos de abastecimento está montada;
  • Há menos de quatro anos, o domínio da sua composição química permitia diminuir cerca de 50% de emissões poluentes  em partículas e NOx. É de esperar ainda melhores resultados com o progresso dos estudos em curso;
  • Existem 250 milhões de viaturas na Europa e mais de mil milhões no mundo que não podem ser substituídas por outras  soluções de hoje para amanhã. Entretanto, os combustíveis sintéticos podem muito bem servir para reduzir a poluição  enquanto é feita a transição para outras soluções (que não sejam só a mobilidade elétrica) em função da evolução  tecnológica, sendo evidente que não podemos esperar por soluções definitivas pois a investigação em parceria com a  indústria está sempre em evolução.

Obstáculos a ultrapassar

  • O processo Fischer-Trops exige uma temperatura entre 200 e 850° e uma pressão de 10 a 35 bar consoante o catalisador  utilizado (por este motivo a BMW e a Audi estão concentradas noutros processos de obtenção de combustíveis sintéticos  diferentes do processo Fischer-Trops);
  • Existem especialistas que estimam que o fabrico do combustível sintético consome duas a três vezes mais energia que  carregar um veículo elétrico (a analisar a fundamentação destas estimativas e não esquecer que essa energia tem origem  em energias renováveis);
  • Os combustíveis sintéticos são quase neutros em emissões de partículas e NOx, mas não totalmente. Novamente, a  indústria automóvel também está a trabalhar para minimizar este ponto, como se referiu acima relativamente aos  processos de produção dos combustíveis sintéticos. Atualmente estamos próximos de zero emissões;
  • Os investimentos são atualmente muito significativos em custos para as unidades de produção e volumes de produção. É necessária uma procura em grande escala para obrigar a uma produção em grande escala e assim baixar o custo relativo  dos investimentos e o preço final. Consequentemente os custos de produção são por enquanto superiores aos da produção  de combustíveis fósseis.

Reflexões sobre a mobilidade elétrica em detrimento do motor térmico

Porque cerca de 70% da energia elétrica do planeta é produzida a partir de energia fóssil, a viatura elétrica tão querida  por Bruxelas está longe de ser neutra em CO2: a energia elétrica necessária para a angariação das matérias-primas, o seu  fabrico, a recarga das baterias e a reciclagem final, tem origem em centrais a carvão ou a gás. Ainda que os 250 milhões  de viaturas existentes na Europa sejam substituídos por viaturas elétricas, não existe capacidade de produção de energia  elétrica para as suas recargas, nem rede de distribuição com capacidade para satisfazer as necessidades em simultâneo  com os processos industriais e consumo doméstico. Portanto, quando fizer a recarga do seu veículo elétrico  (preferencialmente um Tesla) que tão orgulhosamente ostenta ao seu vizinho e se faz passar por “amigo do ambiente”,  saiba que está a emitir CO2 para a atmosfera. Não nos esqueçamos que o veículo elétrico foi comercializado sem avaliação  do seu impacto ambiental – que se começa a revelar não ser tão favorável como nos quiseram fazer crer;

Também está muito na moda a “digitalização” e a “Inteligência Artificial”. Ora isto significa mais um consumo de energia  elétrica, mas nada de enganos: são processos altamente consumidores de energia elétrica e que o diga a Google, sujeita  a multa, por em cinco anos ter gasto mais 58% da sua quota em emissões de CO2 para ter energia elétrica para o seu  programa de Inteligência Artificial. Imaginem-se todos os “datacenters” em funcionamento e o que isso representa em  termos de consumo de eletricidade.

Por este motivo já há quem estime que basta a IA para que não haja produção de energia elétrica suficiente no planeta  para cobrir todas as necessidades (enfim, estas estimativas por vezes têm origem nos “profetas da desgraça”, mas ainda  que atualmente fosse verdade, a esta problemática acrescente-se o consumo em KWh dos carros elétricos nas suas  recargas, da indústria em geral – inclusivamente a dedicada ao fabrico de equipamentos para as energias renováveis – e  do consumo doméstico. As estimativas acima referidas pelo menos têm o mérito de nos obrigarem a fazer contas. Talvez  por isso os nossos políticos (que possivelmente já fizeram contas) estejam a reconsiderar a energia nuclear para resolver  o problema, o que me parece difícil depois de tantos anos de luta para que a energia nuclear fosse banida.

A disponibilidade da energia elétrica é semelhante ao problema da água: vai haver muita população para abastecer e não  chove.

Por isso, quando carregar o seu telemóvel considere a hipótese de os seus descendentes não o poderem fazer, assim como  quando bebe um copo de água, naturalmente não a irão ter com a mesma qualidade e disponibilidade que a atual.  Realmente, não há como a Humanidade liderada por políticos maus decisores, para cada vez mais esgotar os recursos do  planeta. E este parece que não anda contente, tendo em conta as tormentas da Natureza.

As reações da indústria

A imposição do fim do motor térmico exclusivamente a favor do motor elétrico desvia-se no sentido oposto da filosofia  totalmente correta de Carlos Tavares, presidente da Stellantis: “Os políticos fazem as normas. A indústria fornece a  solução”. Pelo contrário, os políticos de Bruxelas sobrepuseram-se (mal como seria de esperar não se percebendo esta  precipitação) aos técnicos e aos cidadãos e suas necessidades sem qualquer fundamento racional e técnico (se houver  algum fundamento, que o divulguem, para que percebamos esta fobia). Precipitação fortemente criticada por Carlos  Tavares, e cujas consequências já comentou, pois começam a evidenciar-se. Foram precisos anos de luta por parte da  indústria e não só, para que Bruxelas admitisse agora em 2024, com a reeleição de Ursula Von der Leyen para presidente  da Comissão Europeia, que as metas eram irrealistas e que os combustíveis sintéticos podem ser uma boa forma de  transição para outras soluções. E ainda fazer compreender a Bruxelas, os custos industriais, comerciais sociais, a  irrealidade das datas estabelecidas, e o problema global de carência de produção de eletricidade e da sua distribuição.  Entretanto adeus aos investimentos que já podiam ter sido feitos.

E falemos do IUC

Assim não se percebe que a viatura elétrica não pague IUC, nem sequer porque o novo governo vai retomar os incentivos  para abate de viaturas antigas, mas para aquisição de viaturas elétricas. Parece-me que os nossos governantes continuam  a não sair dos seus ministérios (nos seus potentes BMW, Mercedes e Audi) para conhecerem a realidade do poder de  compra do povo português e verem como é composto o carrinho de compras do supermercado. Será que com os  incentivos anunciados, os portugueses irão a correr comprar um carro elétrico novo e será esta a sua prioridade de  despesa? (numa época em que as famílias desesperam para pagar alojamento e propinas aos seus filhos? – enfim, as que  ainda podem dar-se ao luxo de poderem ter este desespero, porque outras …). O perfil deste “incentivo” só pode  representar uma subserviência a Bruxelas onde Portugal, sem soberania financeira, anda “de mão estendida” para obter  financiamentos (para que finalidade? Residências Universitárias?). Quanto é que vai ser gasto em incentivos (ou seja,  quanto é preciso para “subornar” os portugueses para abandonarem o motor térmico e passar para a viatura elétrica) e  quanto é que se vai obter em benefícios (não esquecendo nestas contas o impacto ambiental da mobilidade elétrica). Mais objetivamente: em quanto está avaliada a análise custo-benefício? Como cidadãos e contribuintes temos o direito  de saber.

E já que falamos do IUC, é importante referir que o critério de cálculo está obsoleto e não é equitativo. Comparar g/Km  entre veículos com motor térmico e veículos com motor elétrico é o mesmo que comparar comer tarte de maçã com um jogo de consola. Por este motivo, e porque as soluções técnicas são diferentes, o critério tem que ser outro, para que não  seja injusto. No âmbito da tão moderna e politicamente correta “descarbonização”, a comparação tem que ser entre o  que pode ser comparável: Kg de CO2 e NOx que incluem as emissões desde a angariação de matérias-primas, passando  pelo fabrico e pela utilização durante um período de tempo significativo (incluindo recargas de veículos elétricos, que  consumidoras de eletricidade produzida nas centrais que utilizam combustíveis fósseis) até à reciclagem total, seria um  melhor indicador para se saber quem emite mais CO2 e em quanto deve ser taxado.

Considero uma falta de bom senso face à tecnologia atual, em especial a dos combustíveis sintéticos, os incentivos não  serem para aquisição de viaturas de qualquer solução técnica e desde que cumpram as normas antipoluição. Se um  cidadão quiser ir ao centro de uma cidade portuguesa numa viatura que não é poluente (a hidrogénio, por exemplo) ou  fracamente poluente, mas não elétrica, estará impedido de o fazer? Afinal o que conta: as emissões do tubo de escape ou  a obrigatoriedade de ser uma viatura elétrica?

E de soluções que não passam pela mobilidade elétrica, estes últimos meses foram pródigos em alternativas com base no  motor térmico (desde o motor a hidrogénio, ao motor a nitrogénio e ainda ao veículo móvel por levitação magnética) a  ponto de já ter sido proposto um motor térmico com zero emissões. Ou seja, os próprios produtores de normas já estão  ultrapassados pela evolução tecnológica. Que sentido faz impor um máximo de emissões de 99 g/Km (nova norma) a um  motor térmico que não tem ou quase não tem emissões? A Cummins já produziu um motor que cumpre as normas para  2027. Ou seja, por mais restritivas que sejam as normas de Bruxelas para obrigar ao veículo elétrico, a indústria responde  e até apresenta motores térmicos que já convertem em obsoletas as normas que ainda estão para entrar em vigor.

Conclusão

A imposição da mobilidade elétrica foi uma precipitação incompreensível, sem análise prévia do seu verdadeiro impacto  ambiental e sem metas realistas o que poderia ter sido evitado se os políticos de Bruxelas tivessem convidado a indústria  para a organização prévia da implementação desta solução sem prejuízo de outras. É para mim uma imposição ofensiva  para a memória dos milhões de pessoas que morreram para que as imposições terminassem na Europa em 1945.  Pessoalmente, tanto me faz que alguém queira deslocar-se num veículo elétrico, num veículo com motor térmico ou num  veículo a pedais (neste caso será um pouco mais difícil atravessar o Alentejo no mês de férias tradicional de agosto e rumar  ao Algarve com a família e bagagens), desde que sejam veículos com soluções técnicas resultantes de uma política de  preservação do planeta, desde a obtenção de matérias-primas, passando pela construção até à reciclagem total.

Considerando-se a ampla utilização que poderia ser feita (transportes rodoviários, marítimos, aéreos) sem ameaçar o  parque automóvel mundial existente nem a rede de distribuição desta energia líquida, cuja densidade energética não tem  rival, os decisores europeus terão o maior interesse em ponderar os combustíveis sintéticos, pois uma boa parte do futuro  próximo poderia ser esta solução, salvaguardando-se a indústria europeia (e postos de trabalho), pois não ficará excluída  dos vastos mercados que por ora não podem dispensar o motor térmico e durante muito tempo, enquanto as indústrias chinesa, coreana e americana irão enriquecer nesses mercados, pois em vez de abandonarem o motor térmico,  continuam a melhorá-lo.

Perguntas finais: se os motores térmicos terminarem, como vão funcionar os geradores de emergência de hospitais,  telecomunicações, aeroportos, pois se diminuir a produção do motor térmico, muito mais cara será a sua construção.  Como vai funcionar a indústria militar? Passa tudo a elétrico? Ou seja, há uma guerra, arrasam-se cidades, matam-se e  dizimam-se populações, mas sempre se pode dizer que a “pegada de carbono” diminuiu? …