De acordo com a alínea j) do art. 53.º da Lei 169/99, de 18 de Setembro, compete às Assembleias Municipais “Deliberar sobre a constituição de delegações, comissões ou grupos de trabalho para o estudo dos problemas relacionados com as atribuições próprias da autarquia, sem interferência no funcionamento e na actividade normal da câmara”. O procedimento administrativo para proceder à criação de Comissões pode ser exercido pelo presidente da Assembleia Municipal, pela Mesa da Assembleia, por grupos municipais ou por qualquer outro membro pertencente à Assembleia Municipal, sendo o órgão competente para a constituição das referidas comissões a própria Assembleia Municipal, tendo este mesmo órgão a obrigatoriedade de deliberar sobre o seu propósito, bem como sobre a sua composição. A criação de Comissões não deverá colidir, nem na sua finalidade, nem tão pouco no âmbito do seu funcionamento, com a actividade normal da Câmara Municipal, sendo que esta salvaguarda se reveste de inequívoca importância.
A título de exemplo, incidindo a nossa atenção, especificamente, na transferência de competências no domínio da saúde para a administração local, poderemos constatar, dado ser este assunto de assumida importância e relevo, que poderia ser amplamente justificada a possibilidade de criação e constituição de uma Comissão Municipal da Saúde. A justificação para criação e consequente constituição de uma Comissão deste género poderia assentar, designadamente, no acompanhamento das referidas transferências de competências nessa área. Assim, a dita Comissão Municipal poderia incidir o seu trabalho no estudo pormenorizado do Auto-de-Transferência, lavrado para oficializar a dita transferência de competências entre o Ministério da Saúde e a autarquia em apreço, sendo que, ao debruçar-se no estudo afincado desse documento, o trabalho levado a efeito por uma Comissão Municipal desta natureza poderia ser uma mais valia para detectar falhas e erros que o mesmo pudesse eventualmente ter na sua redacção, tentando, antes da entrada em vigor do mesmo, supri-las, actuando assim verdadeiramente em prol do interesse da autarquia e também dos munícipes.
Mas, depois de o elencado no referido Auto-de-Transferência de Competências ter entrado em vigor continuaria a justificar-se a existência de uma Comissão Municipal da Saúde, emanada da Assembleia Municipal de uma qualquer autarquia?
Seria considerada essa Comissão Municipal da Saúde útil?
Supondo que o Auto-de-Transferência de competências estava já plenamente executado e supondo que estariam assim as competências amplamente transferidas, seria profícuo, ainda assim, criar-se uma Comissão Municipal da Saúde?
Se o propósito da actuação da referida Comissão Municipal da Saúde assentasse na prossecução e execução a nível local das políticas públicas vigentes no âmbito da saúde, seria a sua criação necessária?
Se, adicionalmente, estivesse consignado que, dentro das funções da dita Comissão Municipal da Saúde, pudesse existir a possibilidade de esta poder vir a emitir sugestões, efectuar estudos, elaborar relatórios e propor programas de acção, bem como apresentar propostas às entidades competentes, relativas à resolução de problemas na área da saúde, seriam essas competências consideradas válidas e justificadas?
Deveria existir, nestes moldes, uma Comissão Municipal da Saúde, emanada da Assembleia Municipal e constituída por deputados municipais?
Para responder a estas perguntas há que ter em atenção que, no caso particular da Saúde, no âmbito da concretização dos princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública, o Decreto-Lei 23/2019 de 30 de Janeiro de 2019 advoga a obrigatoriedade de ser criado, em cada município, o Conselho Municipal de Saúde.
Trata-se, este Conselho Municipal da Saúde, de um órgão consultivo que permite articulação de estratégias de intervenção do domínio da política municipal de saúde. Este órgão exerce as competências previstas na Lei e no respectivo regulamento municipal, competências essas como emissão de pareceres, designadamente sobre a Estratégia Municipal para a Saúde, passando também por emissão de recomendações, para conveniente adopção de determinadas medidas, por emissão de propostas e questões relacionadas com a área em apreço, bem como o delineamento de procedimentos que possam conduzir à análise acerca do funcionamento dos estabelecimentos de saúde, dando ênfase à promoção da eficiência e eficácia do sistema de saúde.
Ora, posto isto, a criação do Conselho Municipal de Saúde, como se compreende, esvazia as competências inerentes a uma pretensa Comissão Municipal da Saúde, emanada de uma qualquer Assembleia Municipal, sobretudo se esta última tiver sido criada após a entrada em vigor do Auto-de-Transferência de Competências e por conseguinte depois da efectiva transferência de competências, nesta área, para essa mesma autarquia.
Poderá facilmente perceber-se que a existência de uma Comissão Municipal da Saúde, numa dada autarquia, poderá vir ser considerada inadequada e potenciadora de vieses e confusão no âmbito das funções que lhe possam estar adstritas e que poderão colidir com o âmbito das funções do Conselho Municipal da Saúde, cuja criação e instalação se reveste de obrigatoriedade legal, como já se referiu.
Se, por sua vez, uma Comissão Municipal da Saúde for criada em detrimento da efectiva criação de um Conselho Municipal da Saúde isso implicará que não se estejam a cumprir, por parte dessa autarquia local, os requisitos legais inerentes à concretização da transferência de competências para os órgãos municipais no domínio da saúde. Esse incumprimento irá prejudicar em última instância os munícipes e os seus interesses numa área tão importante como é a saúde, no caso em apreço.
Comissão, conselho… nem sempre é fácil, para o vulgar cidadão, e até mesmo para muitos deputados municipais eleitos, entenderem o que implica e encerra a extensão de determinados conceitos, usados no âmbito da administração publica. No entanto, no caso dos deputados municipais, dadas as responsabilidades que lhes estão inerentes, esse esforço deve ser feito para evitar erros crassos no manejo das competências adstritas às autarquias, as quais sofreram um incremento de considerável monta após a transferência de competências, não só na área da saúde, que se utilizou aqui como exemplo, mas também noutras áreas de similar importância para os munícipes e para o desenvolvimento do território onde residem.