Com o propósito de actuar no âmbito da coesão territorial e social tem vindo a assistir-se a uma descentralização administrativa crescente que tem reforçado sobremaneira o poder local. Desta feita, são cada vez em maior número as competências adstritas às Câmaras Municipais, mas, sobretudo, aos Presidentes das mesmas.

Contrariamente ao consignado na Constituição da República Portuguesa, que quase que parece ocultar a figura do Presidente da Câmara, não parecendo considerá-lo um órgão municipal, uma série de textos legislativos têm vindo a reforçar os poderes que lhe são inerentes, os quais têm vindo a aumentar, até mesmo em contraponto com aquilo que parece ser um esvaziamento dos poderes dos órgãos colegiais do Município, designadamente da Câmara Municipal.

O Presidente da Câmara tem no nosso país, na fase actual de organização municipal, um vasto elenco de competências que lhe imputa uma autoridade deveras singular e uma posição muito relevante, sendo que em termos de direito comparado o sistema português surge como um dos que lhe consigna maiores responsabilidades e visibilidade.

Na actualidade, o Presidente da Câmara não é meramente um executor das deliberações dos órgãos representativos do Município e, para além da função executiva, tem também a si adstrita a função presidencial, a função decisória e a função interlocutória.

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Este manancial de poderes, para além de afrontar, de certo modo e pelos motivos já aludidos, o texto fundamental, implica, por exemplo, que o presidente da câmara tenha poderes para a criação de gabinetes de apoio pessoal, gabinetes de apoio aos vereadores e possa proceder a uma vasta delegação de competências aos dirigentes de unidades orgânicas que compõem a autarquia, podendo assim ser o responsável pela criação de um vasto conjunto de estruturas administrativas nos serviços municipais.

Por outro lado, o excesso de competências do presidente implica que a sua conduta seja apenas sindicável pela via judicial, não sendo este responsável perante o órgão colegial que integra.

Muitos poderão alegar que o reforço de competências inerente à figura de um presidente da câmara é legítimo e decorre no âmbito de uma natural extensão das competências da presidência de um órgão colegial, no entanto, não terão já essas competências dilatadas extravasado a caracterização constitucional do próprio órgão municipal?

Não estará esse manancial de competências, em alguns casos, a contribuir para lavrar terreno para a ocorrência de ilícitos?

Poderá esta dilatação de competências estar a despoletar, em algumas autarquias, a criação de pequenos feudos onde o presidente da câmara, julgando-se senhor absoluto, poderá ser responsável por actos déspotas e decisões tomadas em benefício próprio, em detrimento de exígível benefício do território que deveria administrar com parcimónia?

O mediático e crescente envolvimento de autarcas em processos judiciais, muitos deles constituídos arguidos na sequência dos mesmos e alvos de buscas judiciais, tanto em contexto laboral como nas suas residências, outros tantos acusados, condenados, até mesmo com perda de mandatos associados, mostra bem o lastro de suspeição que hoje em dia parece estar adstrito aos autarcas e consequentemente ao poder local.

Haverá uma intrincada cultura de ilicitude disseminada nas autarquias portuguesas?

Porque motivo estarão as autarquias mais vulneráveis a fenómenos com estas características?

Procedimentos ilícitos no âmbito de contratação pública e de recursos humanos, recebimento indevido de vantagem e tráfico de influências são apenas alguns dos crimes que mais usualmente têm surgido associados a autarcas e à sua actuação no poder local. Para tal podem estar a contribuir inúmeros factores, entre os quais se pode destacar, a título de exemplo, o facto de Portugal ser um país com um tecido empresarial ainda muito dependente das relações estabelecidas com o Estado, podendo estas facilmente tornar-se insidiosas.

Como interlocutores privilegiados de uma autarquia, os presidentes de Câmara podem exercer aquilo que se designa habitualmente por Magistratura de influência, desempenhada no contacto com os órgãos centrais, desconcentrados ou periféricos do Estado, mas também com as instâncias internacionais e europeias. Essa magistratura de influência tem como intuito primordial a alavancagem do território concelhio a vários níveis.

Mas como poderá ser convenientemente exercida essa dita magistratura de influência se sobre essa pessoa incidirem suspeitas de conduta ilícita e dúbia no âmbito do exercício das suas funções?

Independentemente dos motivos que possam ser, eventualmente, apontados para o eclodir e a persistência destes fenómenos, o que parece ser inegável é que a proliferação destes ilícitos ou mera suspeita da sua existência são o mote para o consequente desenrolar de processos judiciais que, regra geral, tendem a arrastar-se quase que indefinidamente ao longo do tempo, tanto na vida dos visados como na vida das autarquias, contribuindo para uma instabilidade e incerteza indeléveis que afecta tudo e todos criando uma vulnerabilidade na administração autónoma que não é passível de ser escamoteada e que prejudica sobremaneira, as cidades e o seu adequado desenvolvimento.