Como se fosse a tabuada: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Como se fosse a tabuada: 1961 Benfica, 1962 Benfica. 1964 Sporting, 1987 Porto, 2003 Porto, 2004 Porto, 2011 Porto. Há nomes, anos e clubes fixos na memória. Como se fosse a tabuada. Sejam os Cinco Violinos ou os campeões portugueses da UEFA.
E antes da UEFA, nada? Antes da UEFA, há a Taça Latina. O Benfica levanta o troféu em 1950, o Sporting é o primeiro clube português a chegar a uma final internacional. E o que é a Taça Latina? Uma invenção engraçada das federações de quatro países, Portugal, Espanha, França e Itália, cujos campeões nacionais jogam entre si no final da época e decidem o título de campeão. Oficioso. Quer dizer, a FIFA está em cima do assunto, autoriza e tal, só que não se dedica de corpo e alma à cena. Daí que alguns clubes coloquem na sua lista de troféus, como Benfica, Barcelona mais Real Madrid, e outro nem por isso, estilo Milan.
Adiante. A primeira edição é em 1949. Participam Sporting, Torino, Stade Reims e Barcelona. O primeiro jogo inclui Sporting, o primeiro golo idem idem. A primeira taça, essa, é do Barcelona. A final faz hoje 71 anos. O Sporting é o clube da moda em Portugal. O nascimento dos Cinco Violinos destrói a concorrência. Em 1947, é campeão nacional com recorde de golos (123). Em 1948, é campeão nacional mais vencedor da Taça de Portugal. A conquista da 1.ª divisão é um hino ao detalhe. O Benfica dobra a primeira volta à frente da classificação, com dois pontos de avanço sobre o Sporting e a vantagem da vitória por 3-1 no campo do arquirrival. Até ao jogo da segunda volta, no Campo Grande, essa diferença pontual mantém-se. Antes do dérbi, o treinador sportinguista Cândido de Oliveira é acusado pelo próprio jornal do clube de estar a delinear uma táctica suicida para entregar o título ao adversário, de quem é adepto confesso. A 25 de Abril, quatro golos de Peyroteo derrubam as teorias maquiavélicas. Com 4-1, o Sporting passa para a frente do campeonato e reconquista a vantagem de golos no confronto directo, o primeiro factor de desempate.
Cândido demite-se do cargo de treinador do Sporting por não admitir que os dirigentes leoninos pudessem colocar em causa a sua dignidade. O Sporting, através do presidente, segura-o. E bem. Até ao fim do campeonato, ainda há um momento à Hitchcock: na penúltima jornada, o Sporting perde 1-0 em Setúbal no mesmo dia em que o Benfica é surpreendido em casa pelo Elvas, com bis de Patalino (2-1). Feitas as contas, Sporting e Benfica acabam empatados em pontos, com vantagem de um golo para o Sporting. É o curioso rótulo do “campeonato do pirolito”. Na Taça de Portugal, o drama é inexistente. O Sporting dá 3-0 ao Benfica na meia-final e 3-1 ao Belenenses na final, para a despedida do capitão Álvaro Cardoso. É o final apoteótico de uma época marcada pelos bons resultados com equipas estrangeiras. Ao 4-4 vs Athletic Bilbao na inauguração oficial do Estádio do Lumiar, segue-se o 8-2 vs Lille, a 10 Junho 1948.
Pouco mais de um ano depois, o Sporting festeja o tri com seis pontos de avanço sobre o Benfica. Qualificado para a Taça Latina, o Sporting entra em descompressão. Na última jornada, em Guimarães, só um violino em acção. O quinteto do ataque é formado por Armando Ferreira, Vasques, Sérgio, Serra Coelho e Martins. O suplente de Peyroteo, um tal de Sérgio, marca um hat-trick, acaba 3-1. Na semana seguinte, começa a Taça de Portugal. O sorteio dita a deslocação a Santo Tirso. Como o Tirsense é da 3.ª Divisão, Cândido de Oliveira aposta só em dois violinos (Vasques e Albano). Acontece Taça, obra de um golo de Mendes aos 83 minutos. O Sporting perde 2-1 e é afastado à primeira. Estamos a 17 Abril, a Taça Latina só começa a 26 Junho. Dois meses e tal sem competição, e agora?
Joga-se a feijões até à viagem para Madrid. O Torino é o adversário, no Metropolitano. Ponto da situação: o Metropolitano é a casa do Atlético Madrid, onde o Sporting goleara 6:3 em Setembro 1948, numa tarde em que Peyroteo joga subtilmente fora da área e cria um buraco XXL. Jesus Correia tira proveito desse espaço e marca seis golos. Sim senhor, seis golos. É ele o maior nome dessa tarde. E o Torino? Desfalcado de toda a sua equipa sénior, à conta do acidente aéreo de Superga no voo desde Lisboa, onde se deslocara a convite do Benfica e a propósito do jogo de homenagem ao capitão Francisco Ferreira, os juniores jogam o resto do campeonato com os juniores das outras equipas adversárias. O Grande Torino é campeão italiano pela quarta vez consecutiva e aparece em Madrid com uma média de idades de 19 anos. O guarda-redes Gandolfil é o mais velho, com 20. E também o mais alto.
A meia-final é quase de sentido único, a favor do Sporting. De regresso à titularidade, Peyroteo marca dois golos na primeira parte, magistralmente oferecidos por Vasques e Albano. No reinício, hat-trick de Peyroteo numa bola perdida na grande área. O Sporting já está na final e nem o 3-1 de Marchette estraga o que quer que seja. Agora é esperar pelo resultado de Barcelona vs Stade Reims. Ganha o Barcelona. A final é daí a uma semana, dia 3 Julho, no Chamartín (nome do bairro), futuro Santiago Bernabéu (nome do presidente). O calor abate-se sobre a Península Ibérica. Em Lisboa, à beira-rio, o termómetro marca 29,5 graus à sombra antes das nove da manhã. É um ver-se-te-avias. No interior, como Madrid, o calor é mais asfixiante. Entra primeiro em campo o Sporting, só depois o Barcelona. Há fotografias para todos os gostos.
Qual será o primeiro campeão latino? Sai o Sporting. Marca o Barcelona. Aos 9 minutos, Basorá recupera uma bola e passa a Seguer, cujo remate bate inapelavelmente Azevedo. O empate chega logo a seguir, por Jesus Correia. A jogada até começa numa investida dos catalães. O remate perigoso de Basorá é defendido por Azevedo, cuja reposição apanha toda a gente de contrapé. Peyroteo recebe e passa para Vasques, depois Jesus Correia e 1-1. Começa a chover. Tão bom.
O resultado aguenta-se até ao intervalo, muito por culpa de Azevedo. Na segunda parte, um erro de julgamento de Juvenal permite o definitivo 2-1 de Basorá. Desta vez, Azevedo é figura de corpo presente. De novo, o Sporting atrás do resultado. Albano acerta uma bola na trave e a baliza de Velasco é passada a pente fino. Nos últimos instantes, o Barcelona gasta tempo em tudo o que é possível e imaginável entre lançamentos laterais e livres, enquanto o Sporting quer o 2-2. Que não chega aos 90’, através de Jesus Correia, porque Velasco sai decidido da sua área de rigor com um pontapé para as couves. Acto contínuo, o árbitro francês Sdez apita para o fim. O Barcelona é campeão latino em Madrid e o Sporting dos Cinco Violinos acaba aqui a sua aventura vertiginosa. É o último jogo oficial de Peyroteo. Chega Mário Wilson para o seu lugar e começa outra era.