Paralelamente à diminuição da acessibilidade em Saúde fruto da degradação do SNS, Portugal ocupa lugares cimeiros na esperança de vida à nascença que subiu de 67 anos em 1970 para 81.8 anos em 2019, melhor que a média dos países europeus (81 anos), e na taxa de mortalidade infantil de 2,8 óbitos por mil nados-vivos, o que faz de nós um dos melhores países do mundo, neste indicador, à frente de países como a Alemanha, Áustria, Dinamarca Israel e Suíça (“Health at a Glance”, OCDE 2021).

O desfasamento destes e outros marcadores de progresso do referido estudo com a falta de efectividade de benefícios públicos em Saúde é inquietante pois não se vê, ainda, reflectido o estado do SNS, modelo assistencial apregoado durante décadas como “universal e humanista”, hoje muito doente à espera de tratamento complexo devido a comorbilidade crónica descompensada.

A questão não se reduz ao fecho recorrente de serviços de urgência, à falta de médicos e enfermeiros, aos tempos de espera absurdos para atendimento urgente, nem às longas listas de espera para cirurgia programada. A falência do SNS, parece-nos resultado natural da gestão pública débil que se promove na premissa “dar tudo a todos”, quando falta o essencial.

Dentro da organização de Saúde, é impossível não ver a inércia crónica de actores do próprio serviço que aproveitam o caos, o emblema de ineficiência do SNS, para justificarem o seu desempenho medíocre. Egos gigantes que criam o problema para se evidenciarem como solução, enquanto os verdadeiros profissionais se esforçam todos os dias por ultrapassar constrangimentos, para tratar uma população empobrecida com cada vez mais pessoas vulneráveis. É necessário responsabilizar a acção decisiva, mas essencialmente a inacção. Está por fazer a clivagem entre a verdadeira qualificação profissional e a incompetência à sombra da confiança política.

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Do lado dos utentes falta uma estrutura de cuidados primários básicos que funcione, resposta às necessidades de educação para a saúde, cuidados de saúde mental, higiene oral e demais vigilâncias de clínica geral. Falhas agravadas pelo lamentável atendimento telefónico, forma privilegiada de contacto com o Centro de Saúde instituída durante pandemia, e da qual se tem abusado de forma indecente. Cresce o número de pessoas que já desistiram de procurar atendimento médico e de enfermagem no centro de saúde e, não tendo capacidade económica para clínicas ou hospitais privados, recorrerem ao serviço de urgência para os mais diversos tratamentos, da unha encravada ao abcesso dentário.

Assim nos deparamos com o pandemónio das falsas urgências no hospital, último recurso dos pobres, casa de todas as dores, onde acresce iliteracia em saúde. Uns sem capacidade de fazer valer os direitos, outros em pânico com escoriações e picadas de insecto, muitos a ligar 112 por uma vulgar dor de cabeça, e também emigrantes a exigirem prontidão de privilégios não existentes nos seus países de origem, mas bem descritos nos manuais de instruções da Internet. Todos a lembrarem que do outro lado da face miserabilista do SNS está o desperdício e o abuso.

A injustiça social e outras assimetrias na Saúde são evidentes e sugerem intervenção de ciências, da economia à criminologia se interesse houvesse em verdadeiras soluções, matéria sobre a qual estamos cépticos. Talvez alguém consiga explicar as ligações tortuosas entre os sectores Público e Privado na Saúde, em especial, o colapso do primeiro coincidente com o crescimento exponencial do segundo, certamente com poderosos “encaixes financeiros” para contratar os melhores profissionais.

Defensores da livre iniciativa e nada tendo contra o sector Privado, muito pelo contrário, parece- nos urgente, porém, um ordenamento idóneo das relações público-privadas, um sistema concorrencial, limpo e ético de proteção em saúde. No entanto, falta coragem à Decisão para enfrentar o terramoto dos lóbis que a decência provocaria.

Longe da decência, transparência e outras virtudes extintas no SNS, está o Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) criado pela Resolução do Conselho de Ministros no79 em abril de 2004. Vamos a factos, sumariamente, para combater a demora das listas de espera para cirurgia, o SNS paga ao sector privado os serviços cirúrgicos dos seus doentes porque não consegue dar-lhes atendimento em tempo razoável. Por conseguinte, médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares, em número considerável, trabalham de manhã no hospital público e à tarde em clínicas, ou para grupos privados no próprio hospital público, ao abrigo do referido programa SIGIC, obtendo um segundo vencimento com preço por hora bem mais atractivo. Quase seria legítimo dizer, fazem no sector Privado à tarde aquilo que não fizeram de manhã no Público.

E por aí vai a comorbilidade do SNS em que a solução sustenta o problema, caso dos exames complementares de diagnóstico encaminhados para o serviço Privado por demora crítica no Público, como colonoscopias, ecografias, ressonâncias magnéticas e outros. Fórmula desejável aos interesses privados, obviamente muito agradados com o baixo investimento público em equipamento de diagnóstico nos últimos anos, situação que obriga ao gasto de uma parcela significativa do orçamento da Saúde em serviços convencionados.

Na actual conjuntura, os recursos, meios e técnicas de diagnóstico são escassos e terão de ser poupados para as situações graves ou emergentes, aquelas que não interessam ser exploradas pelos serviços privados por serem demasiado caras e fora da cobertura dos seguros de saúde dos seus clientes. Quando a situação é grave cá está o serviço público que não olha a custos, e bem, para salvar vidas. Mas a fonte não é inesgotável.

Contratar mais recursos humanos para o SNS não chega, é desejável mudança de paradigma, novo desdenho administrativo que cative os profissionais com gestão humanizada, sem oscilações entre laxismo e autoritarismo. São fundamentais remunerações justas e valorização do bom desempenho, ou não tenhamos ilusões, a baixa produtividade manter-se-á fruto da insatisfação profissional, e porque tende a ser causa e consequência de um ativo patrimonial ambicionado e negociável, a Lista de Espera.

O país é uma realidade carente de ética e ordem, no qual o SNS espelha praxis de “navegação à vista”, longe de verdadeira estratégia de desenvolvimento. Para lá do actual mercado da Beneficência em vigor no SNS, são necessárias novas visões de proteção social e organização da Saúde, em que o cidadão tenha direitos, mas que nunca se afastem dos deveres e compromisso com o Valor do Cuidado.