Mentir é verbo substantivo de múltiplas formas, comportamentos, palavras e omissões, prática “natural como a sua sede” desde os primeiros anos da infância, durante a qual se aprende que a Branca de Neve tem de morrer porque a madrasta quer ser a mais bela.

Depois de uma socialização pautada por incoerência e logro onde as obrigações de cidadania não são priorizadas, é inevitável uma ética frouxa perceptível especialmente naqueles em que é suposto existir maior robustez moral. Deste modo qualquer colagem de improcedentes formas de mentira a líderes institucionais, figuras políticas e outros modelos sociais não é coincidência.

Cabendo-lhes papel de eixo no funcionamento social escolhem o protagonismo de encenações cansativas e pouco convincentes, como as que se assistem na dinâmica governativa em que ninguém acredita, sobretudo no empenho administrativo e reformas estruturais. Porém, uma larga dose de mentira política é vital à estratégia partidária e mesmo à soberania do país, conhecido o conformismo do povo tendencialmente brando e alheado das questões públicas. Se introduzirmos o factor ficção, enquanto forma de mentira fantástica da qual somos adictos pois sem ela a vida seria um aborrecimento, temos a equação política perfeita que não falha o resultado.

É com um pé na realidade empobrecida e outro na ficção do desenvolvimento económico, que nos deparamos com o maior problema de Portugal, a crónica falta de talento político, aliás compreensível, pois os efectivos talentos políticos não se dão ao trabalho, recusam vassalagem às cúpulas e emigram a par de outros que por cá teriam o talento pago a mil euros por mês. Ficam os mais velhos e os ditos “desqualificados”, os nossos e os que chegam de fora a fugir à fome nos seus países, todos entregues às verdades de uma geração política bolorenta sem qualquer interesse em desmontar a teia de nepotismo que lhe garante a sobrevivência.

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Elegemos como rainha da impostura a mentira política em geral, encabeçada pela reforma fiscal a que nenhum governo se atreve verdadeiramente embora se faça crer que sim. O socialismo centrado em gerir a pobreza, é líder na ilusão de que vamos ser todos ricos com distribuição de migalhas vindas da tributação compulsiva da riqueza emergente e alinha-se com outras riquezas, monopódio de grupos sitos no seu protectorado.

No espaço público, arena de todas as falsidades, a sociedade civil debate-se no escrutínio das retóricas “de com a verdade me enganas” e cai na desconfiança próxima da paranoia colectiva. A pressão constante da mentira conduz à sua desvalorização nos juízos e decisões dos responsáveis, mentira que ao não ser sancionada perde gravidade e passa a ser tida como normal, prevalecendo no âmbito político a ideia de que todos mentem e que mentir é parte integrante da actividade política, eis a “novilíngua” de George Orwell na obra 1984, distopia tornada realidade na falência moral do estado democrático.

Falar de mentira é tocar a essência humana dividida entre a preservação do indivíduo e a necessidade de articulação com interesses do grupo onde se insere, circunstâncias contrárias às expectativas pessoais marcadas pela ambição ou cobiça numa dinâmica de narcisismo versus “socialismo” abordada por W. Bion (1897-1979). Sobre a quota de “socialismo” que possa eventualmente existir em cada um de nós, deduzimos não passar de mentira altruísta, onde a anulação dos interesses pessoais em favor do grupo, nunca se afasta do desejo de autopromoção e ganhos encobertos por uma espécie de generosidade perversa.

O mentiroso é um vaidoso conhecedor dos seus défices, rejeitados por não satisfazerem o ego, facto que o leva a construir ilusão com que suaviza a mediocridade. Sempre conhecedor da realidade precisa de a pensar e esconder atrás de um manto de engano que seja crível, isto é, que tenha certa congruência a com a verdade.

Farsas e tramoias ocorrem por mão de perversos, pessoas agradáveis, figuras que se apresentam irrepreensíveis, sedutoras e frequentemente poderosas. Imobilizadas pelo seu carisma, as vítimas chegam a sentir-se honradas por serem alvo da atenção de pessoas tão plenas. O sucesso da mentira tende a ser garantido quando do outro lado encontra a idealização, um processo psicológico que projecta no outro qualidades que ele objectivamente não tem. Aqui reside a vontade de ser enganado com uma boa estória que dê cor à vida teimosamente cinzenta.

Em jeito conclusão, a vida sem mentira seria um duro golpe na autoconfiança, as relações internacionais e a diplomacia ficariam caóticas e o sistema social sem labirintos políticos, chico-espertismo e corrupção seriam completo tédio.

Viver com a verdade exige capacidade para enfrentar terríveis comentários honestos sobre o nosso trabalho ou sobre a maneira como nos comportamos. Perceberíamos que as pessoas não nos prestam muita atenção e que não somos tão importantes e qualificados quanto julgamos ser. As nossas crianças perderiam a fantasia do pai natal e dos duendes, e nós adultos, verdadeiros, mas indelicados, deixaríamos de elogiar o jantar medíocre do anfitrião…. Temos todas as razões para delegar a verdade à pós-humanidade porque por agora o mundo sem mentira seria certamente um lugar insuportável.