Hoje acordei com tremenda falta de inspiração e de assunto. A cabeça vazia e limpa como um balneário japonês. De manhã, saí para comprar os jornais (sim, sou um sapiens sapiens do tempo dos dedos manchados de tinta). Nada. Minto, alguma coisinha. A história do “russo” Mário Fernandes, que, em russo, só sabe dizer spasibo, pozhaluysta e horosho. Era bom que alguém o ensinasse a dizer a palavra mais importante em qualquer língua: “não”. Ora, este Fernandes de São Caetano do Sul, estado de São Paulo, Brasil, quase se perdeu por causa do álcool, quando ainda jogava no Grémio de Porto Alegre. Recuperou e, abstémio, para onde é que foi? Para a Rússia, um dos países mais bêbedos do mundo (cf. aqui os dados). Ali não brincam em serviço. No campeonato de secagem de adegas, a Rússia já está nas meias-finais. Só perde para a Lituânia, a Moldávia e a Bielorrússia. E o Fernandes em doca seca. Voltemos à língua. Stanislav Cherchesov, o selecionador russo, não se incomoda com o reduzido vocabulário do jogador. “É como um cão: compreende tudo, só não responde”, disse o treinador, com típico humor eslavo.

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Os ingleses estão todos contentes porque, ao fim de 22 anos, lá ganharam nos penáltis, e perderam a virgindade no futebol desonesto verberado semanalmente por comentadores e ex-jogadores britânicos, com gritos de indignação de profetas bíblicos contra as manhas dos “latinos”. Porém, ainda têm muito que aprender: a simulação de Maguire foi tão rudimentar que o próprio se levantou de imediato e fugiu para a sua grande área; Henderson, tocado muito ao de leve pelo cabelo de Barrios, também teve um desempenho artístico insatisfatório, mesmo se usarmos como bitola os atores de EastEnders. Enfim, uma vitória é sempre melhor que uma vitória moral. Gareth Southgate, fleumático e conciso, resumiu bem os estranhos acontecimentos da passada terça-feira: “talvez estejamos a ficar mais espertos. Talvez agora estejamos a jogar de acordo com as regras que o resto do mundo segue.” Tantos anos e tanto sofrimento para chegar à famosa sentença de Jesus: “o fair-play é uma treta”, disse o mestre aos seus discípulos enquanto estrangulava um inocente cordeirinho.

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Southgate, pois. Onde é que ele jogava? Ninguém sabe. Era lateral-direito? O mais certo. Todos os laterais-direitos têm dentro de si a semente da retidão (sempre com os seus penteados geométricos) e o germe de uma infelicidade infinita. O que toda a gente sabe, assim que ouve o nome Southgate, é que este foi o desgraçado que falhou o penálti em Wembley, no Euro-96. Nesse ano, recordai-vos, ó, desmemoriados, o futebol regressava a casa e Southgate entregou-o nas mãos de Köpke, para que este o levasse novamente para a Alemanha. Vede o vídeo no Youtube. Tudo aquilo dá vontade de chorar. Southgate parte para a bola com a confiança de quem vai fazer um exame de condução e regressa com o ar de quem chumbou por ter atropelado uma turma da pré-primária. Reparai, outrossim, na fealdade do rapaz de então e comparai-o com o gentleman oxoniano de barba cuidada que agora se apresenta aos olhos do mundo. É o próprio que confessa ter vivido sempre com o peso daquele penálti falhado. O que demonstra que, ao contrário das vitórias que produzem inconsciência e atrasam, com efeitos estéticos devastadores, a chegada oportuna da maturidade, as derrotas, a melancolia e o sentimento de culpa podem, afinal, conceder a um homem a elegância que a natureza e o welfare state lhe negaram.

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Como eu dizia, acordei com tremenda falta de inspiração e de assunto, ainda a tentar aceitar o facto que uma destas equipas – Rússia, Croácia, Suécia e Inglaterra – estará na final, um cenário ainda mais irreal do que as meias-finais de 2002, em que Turquia e Coreia do Sul disputaram, perante um planeta atónito, o acesso à final de Yokohama. Felizmente, os deuses, o acaso ou os batoteiros da FIFA fizeram com que aquelas equipas defrontassem o Brasil e a Alemanha. A essa equipa germânica, uma das piores de sempre, muito pior do que a deste ano, devemos eterna gratidão por nos ter poupado a um Brasil-Coreia do Sul, que, estou em crer, teria levado ao colapso imediato não só de todas as estruturas futebolísticas mundiais, como dos alicerces que sustentam o universo. Graças a Oliver Kahn e Michael Ballack continuamos aqui, à espera, com alguma impaciência, que comecem o Brasil-Bélgica e o França-Uruguai, e à espera, condenados à desilusão, que o Rússia-Croácia e Suécia-Inglaterra nunca comecem.

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