– Tenho medo, sabe, meu caro?
– Medo? Cuidado com o medo, dizem que é diabólico!
– Quem é que diz isso?
– Olhe, o Chaplin, por exemplo, que dizia que “a vida é uma coisa maravilhosa se não se tiver medo dela”
– Eu cá continuo a achar a vida maravilhosa e tenho muito medo de algumas coisas.
– Como por exemplo?
– Aranhas, meu caro! Aranhas…
– Mas medo de bichos temos todos! E do amor? Será que é possível amarmos e termos medo? Dizem que o medo é um travão às emoções, que não nos deixa viver a vida de mãos dadas.
– Certo, meu caro, percebo o seu ponto. Mas não olho para o mundo como azeite e água. É por essa razão que prefiro o Senna e a Clarice Lispector ao Chaplin.
– Não compreendo.
– Diziam que o medo é uma asa robusta e fascinante que guia os corações em direção ao lugar do desejo.
– É bonito, realmente. Mas não falemos disso, calculo que não tenha pedido a minha ajuda por causa de aranhas e de amor.
– Hum…
– O que foi agora?
– Nada, meu caro, fiquei a pensar nas aranhas e no amor.
– Mas diga lá, de quem tem medo hoje? Sim, porque os nossos medos variam consoante a nossa disposição e o nosso humor.
– Tenho medo do meu emprego, sabe?
– Por causa desta pandemia?
– Não! Já o tinha antes. Agora tenho é mais tempo para pensar sobre certos assuntos.
– Mas não gosta do que faz?
– Também não é isso. Gosto muito do que faço e estou muito contente por ter tido a sorte de ter descoberto a minha vocação.
– Oh, homem! Diga-me o que se passa! Desembuche!
– Calma, já lhe digo. As coisas têm o seu tempo. É como a fruta da época. Deixemos a conversa fermentar (enquanto olha para o relógio).
– É agora?
– Não, mais cinco segundos. Respire fundo…
– Pronto, já está, cinco segundos!
– De que falávamos?
– De uma coisa que o assombrava hoje!
– Ah! Certo. Peço-lhe desde já desculpa pela minha falta de memória.
– Não há problema, todos nós temos virtudes e defeitos.
– Por falar em defeitos…
– Não, não! Agora vamos acabar a conversa.
– Já cheguei à conclusão que não quer fluidez num diálogo.
– Não é isso. Tenho a sopa ao lume, cinco filhos e uma mulher à espera para jantar.
– Imagine se Platão tivesse a sopa ao lume. Não teria acabado os livros. Mas é verdade que os tempos são outros, mais competitivos.
– Pode explicar?
– Claro, foi por isso que o chamei à janela, já que agora proíbem convívios e ajuntamentos. Estava a dizer que a sociedade está demasiado competitiva, todos se querem aniquilar e mostrar que são melhores, e tenho medo que apareça alguém mais capaz do que eu.
– Olhe que falou bem! Está a ver como é bom dizer aquilo que sente? Mas agora mais a sério, tem medo de perder o lugar?
– Sim, muito, meu caro. Mesmo que não tenha uma família para sustentar, custa-me saber que isto são sete cães a um osso.
– Tem toda a razão. O talento brota de todos os lados, parecem ervas daninhas, e quem nunca se amedrontou com aparecimento de alguém competente com receio de perder o lugar que atire a primeira pedra!
– Pois, é isso mesmo! O que é que me aconselha?
– Faça aquilo a que é chamado. Bem feito, com brio, seriedade e afinco. Acredito piamente que para os bons há sempre espaço.
– Acha mesmo? Não sou capaz de ter a sua confiança…
– Só lhe digo que acho! E não sou o único. No outro dia estava a ver uma entrevista do Salvador Martinha. Conhece?
– Sim, aquele humorista, não é? Por acaso gosto dele, tem graça!
– Estava a ver uma entrevista dele em que dizia isto mesmo que lhe estou a dizer. Que sente que não é preciso ter receio da competitividade e que ela significa que a qualidade dos produtos vai aumentar.
– E por consequência cresce o mercado, a oferta e a procura.
– Sim! Esta a chegar lá!
– Não está a ser demasiado romântico, meu caro?
– Se me provar o que está a dizer, posso mudar de opinião.
– A sério?
– Claro. Não tenho medo da incoerência, se isso significar uma caminhada atribulada em direção à verdade…
– Pois é. Mudar é bom, desde que se mude para melhor. E se isso é ser incoerente, então ainda bem que o somos. Olhe, felizmente, não me estou a lembrar de nenhum exemplo para provar o seu romantismo, visto que quero acreditar nele.
– Certo. Não há problema.
– Sabe, meu caro? Fico sempre impressionado quando pessoas de ambientes extremamente agressivos e competitivos contrariam aquilo que a sociedade nos quer fazer pensar – que não há espaço para todos.
– É verdade! Ainda por cima no decorrer de uma epidemia ter esse pensamento é perigoso para a vida comunitária. Precisamos do contrário, de entreajuda! Quer seja entre um pai e um filho, ou até entre clubes rivais ou pessoas que supostamente são concorrentes entre si.
– Claro. Em tempos de epidemia e não só!
– Tem razão. Talvez isso venha a acontecer.
– De forma forçada, é um facto.
– Que seja, temos de lutar por isso. É por essa razão que louvo sempre quem tem a coragem de demonstrar que também existe um caminho de cooperação e solidariedade, e que tais coisas não invalidam uma competividade que se pede saudável.
– Por falar em saúde, já me cheira a sopa quente! Vá lá jantar que tem a família à espera.
– Quando isto tudo passar vem cá experimentar esta sopa de coentros. Até lá, temos a janela como elemento de união.
– Fica combinado, meu caro.
– E viva a amizade!
– Isso, mesmo. Viva!